Quando me encontro debatendo religião, ou algum assunto relacionado, com alguém (assuntos relacionados é uma categoria bastante ampla se você adota uma cosmovisão cristã, pois a religião acaba permeando praticamente tudo o que você diz – ou antes, pensa), acabo me deparando com uma exclamação sincera e muito arguta que foi melhor formulada por um querido amigo, semana passada: “Tiago, você é muito dogmático!”. Bem, pensei um bocado a respeito e dei-me conta de que esse é justamente o ponto essencial do problema da postura das pessoas em relação à religião. Explico por que em seguida.
O primeiro dado que é importante perceber (sim, perceber um dado, não de forma rigorosa, mas sentindo através do contato social com as pessoas, esse tipo de experiência é possível para quem quer que se disponha a fazê-la) é o crescente afluxo de pessoas que busca o desenvolvimento de alguma espécie de espiritualidade. Há muitas no mercado. Há a cientologia, umas tantas seitas pseudo-evangélicas, rituais africanos, wicca, espiritismo, logosofia... e isso é só o que posso recordar no momento, porém o número é imenso e as opções crescem a cada dia. Até as empresas chamam palestrantes motivacionais para falar a respeito do tema (conforme nos lembrou o Pastor Leandro Peixoto duas semanas atrás) e a venda de livros a respeito de vidas passadas é recorde no Brasil, Paulo Coelho continua fazendo sucesso no mundo inteiro e isso não é tudo. Ann Coulter observa em seu último livro (o impagável Godless, e não importa que pensem que ela exagera no tom, acerta na mosca no conteúdo) que o secularismo esquerdista assume cada vez mais o caráter de uma religião, talvez a mais poderosa opositora do cristianismo em muito tempo.
Esta profusão de experiências de caráter espiritual demonstra que estamos buscando uma espiritualidade. Francis Schaeffer dizia que essa busca se deve ao fato de que fomos criados para andar com Deus, e que ao nos afastarmos, não nos damos conta, mas procuramos compensar a Sua falta. Sinto-me irresistivelmente tentado a concordar com ele. Porém, em algum lugar, erramos o alvo. Estamos diante de uma situação em que o politicamente correto e mais democrático modo de lidar ocom a religião é declarar que todas as manifestações auto-declaradas espirituais são iguais entre si, e a bem da verdade, estaríamos inclusive autorizados a criar nossa própria versão de espiritualidade, seja por uma série de circunstâncias que determinaram nossa formação, seja por algum tipo de raciocínio (o que pode afetar bastante o resultado, dependendo da capacidade de cada uma para tal atividade).
Não é de bom tom afirmar que há uma verdade. O problema é que isso acaba desembocando no discurso de que existem várias verdades, o que representa uma desvirtuação aberrante do próprio conceito de verdade (e por mais que Bruno Latour e Bárbara Herrnstein Smith façam malabarismos filosóficos para defender uma verdade mais abrangente ou inclusiva, honestamente, não convencem qualquer praticante de um pensamento filosófico minimamente rigoroso). Diante desta máxima do politicamente correto, por mais infundada que seja, estamos nos tornando cada vez mais reféns da opinião.
A opinião é uma das piores coisas que já ocorreu ao gênero humano cultivar, pois tendemos a acreditar que o mero fato de ter uma opinião, quer seja ela formada em cuca própria ou tomada de empréstimo, tendemos a nos apegar a ela como se fosse um filho querido, se bem que na maioria das vezes, filhos um tanto feiosos que as pessoas não costumam gestar por tempo suficiente. Diante disso, uma pessoa média (termo que uso para substituir a machista – e jurídica – expressão bonus pater familias, a fim de não ofender ainda mais a audiência com meu conservadorismo retrógrado...) teria direito a uma opinião a respeito de como conduzir sua espiritualidade de modo a produzir uma noção tão única quanto seu próprio... nariz (teria usado outro termo, mas não ficaria bem para um “born again christian” o emprego de tal calão). Esta singularidade de opinião, embora seja alardeada como uma grande conquista para a independência de pensamento, acaba tendo o efeito contrário, pois acaba levando milhares de pessoas a acreditarem em certas coisas bem parecidas - normalmente crenças dotadas de algum fundo ético socialmente aceitável ou então portadoras de uma estética peculiar nos procedimentos de seus seguidores que suscite algum interesse - afinal o efeito do comportamento de manada é poderoso e quanto mais permissiva, vaga e, sejamos honestos, vulgar (comum) a espiritualidade oferecida, mais popular, acessível e querida ela acaba se tornando (a cientologia é um exemplo perfeito de despropósito pseudo-religioso. E quem também não se lembra dos diversos gurus dos anos setenta?).
Embora grande parte destas opiniões e formas de “espiritualidade” não envolvam Xemu ou a Confederação Galáctica (suponho que tenham visto o link acima), existe sempre uma chance de que coisas deste tipo apareçam. Já o ateísmo ferrenho de muitas pessoas, escondido por trás de uma fachada “liberal”, acaba por servir de canal, inclusive, para um ódio anti-cristão. O cristianismo tem sido bastante combatido, isso não é segredo para ninguém, e é interessante notar que embora exista uma hostilidade natural do cristão com relação ao pecado (o que a maioria das pessoas considera práticas normais de vida como sexo inconseqüente, o uso patológico da mentira, homossexualismo, alcoolismo como requisito para diversão...) ela nem se compara com a fúria que um não cristão emprega ao descobrir que certas práticas tão queridas para ele são tidas como abomináveis por alguém. Ao ser confrontada com a realidade do pecado por meio da pregação do cristão, infelizmente a reação mais comum de uma pessoa média é dizer que não acha que seja o que faz é ruim porque ele acredita “que não tem nada de mais, que existe uma energia assim... uma força maior e coisa e tal, e que o cristianismo é limitado demais...” ou então que “não existe essa coisa de Deus e de Bíblia, e isso é coisa de pastor para explorar o povo” (veja como a revelação milenar inscrita na bíblia sucumbe diante da opinião mal cozida na cabeça do sujeito) E diante da eventual insistência do cristão em defender aquilo no que crê, o interpelado logo torce para que voltem o Colosseum e seus leões.
Voltando ao problema pessoal que me pôs a escrever: por que me chamar de dogmático? Bem, na verdade creio que é porque eu sou, de certo modo, dogmático. Meu amigo me conhece bem e estava certíssimo. Mas sustento que tenho toda razão para ser dogmático, afinal, enquanto todos ao meu redor tem por uso começar as fases com “Eu acho...”, eu prefiro começar com “A Bíblia diz que...”. Essa diferença é essencial, pois é o que distingue o cristão e é o que empresta uma autoridade tremenda à sua opinião, desde que devidamente fundada na Bíblia bem interpretada. A livre consulta à Escritura é o que me ajuda a não ser, a rigor, dogmático; porém, hoje, o simples fato de seguir a Bíblia faz de mim um dogmático aos olhos do mundo. O fato de sustentar a verdade do evangelho, e sustentar – implicitamente – que existe tal coisa como a verdade causa todo o tipo de arrepios porque faço referência a um padrão fixo de valores e tenho uma visão de mundo determinada por uma verdade eterna.
O cristianismo possui implicações éticas, mas também epistemológicas, científicas e psicológicas que são absolutamente chocantes para o mundo hoje tanto quanto o foram para aqueles que discutiram religião com os primeiros cristãos. É importante procurar entender que espiritualidade é coisa séria, não é algo que você pode adequar às circunstâncias ou trocar como quem muda uma peça de roupa íntima. É um compromisso que, levado a todas as suas conseqüências, muda a própria maneira como o mundo nos afeta – as relações, os fatos, as notícias – e somos de fato transformados. Não sou grande fã do perspectivismo, mas nesse caso a idéia se aplica bem, é como se já não víssemos o mesmo filme que as outras pessoas. Somos radicalmente alienados do nosso meio, transitamos por ele como estranhos, e sofremos com um certo estranhamento do mundo também. Este aspecto experiencial decorre dos pressupostos que descrevi acima.
Minha palavra para quem passa pelo que eu passo é que fique tranqüilo e aproveite. Se estão estranhando praticamente tudo que tem saído da sua boca ultimamente e suas participações em debates “espirituais” começam com citações bíblicas, esse radicalismo é o ponto ótimo de sua existência cristã. Aqueles que estranham o que digo deverão saber que o único meio de participar da compreensão da realidade do Espírito (de Deus) é assumir essa perspectiva nova e abandonar para sempre seu velho modo de pensar, seja ele qual for, por algo mais perfeito. Se soei um pouco dogmático (ou até pior), consegui o efeito desejado.