“ Deus é Espírito, e é necessário que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.” (João 4:24)
“O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida.” (João 6:63)
Ruagh é o espírito, o sopro da vida, o fôlego, a sede da vontade, o vento que percorre a Terra toda e por tudo passa, o hálito, a própria capacidade intelectual humana. Esta palavra condensa nossa capacidade mesma de, desde já, participar do divino, transcendendo a matéria e experimentando a algo mais próximo da totalidade do mundo.
Vivemos tempos em que o vento quase não sopra mais, já não carrega para longe o fedor dos corpos podres que nos cercam. Enquanto estamos acossados pela premência de lidar com os efeitos psicologicamente devastadores do medo, resignados com nosso papel de expectadores e vítimas do drama que se desenrola nas mais diversas regiões da nação em suas diferentes formas, somos incapazes de identificar o mal e dar-lhe um nome.
O pensamento cientificista de nosso tempo, essa fé no deus ciência, nada mais é que a perversão da porção humana que participa no divino por sua capacidade intelectual, e nos imbui de um impulso classificatório que leva logo a apontar os problemas como econômicos, sociais, políticos, educacionais e assim por diante. Acreditamos, à maneira gnóstica, que tais frentes podem ser atacadas e corrigidas de modo a resolver as causas do mal no mundo em sua diversidade e instituir finalmente uma paz social reinante. Ao estudar nossas dificuldades conforme os parâmetros da ciência, acreditamos que temos o poder de mudar a realidade automaticamente, como se fôssemos imperadores na ilha de Próspero e fizéssemos prodígios com uma simples varinha. A verdade é que esse orgulho nos torna piores do que Calibã, pois ao contrário do monstro, permanecemos iguais apesar da experiência sofrida.
O padecimento do espírito é o fruto direto da sua negação. Quanto mais falhamos em reconhecer a hierarquia das causas e conseqüências, bem como sua sede primeira como sendo metafísica e não material, estaremos fazendo eloqüentes discursos sobre o vazio (embora isso seja talvez injustiçar o vazio, tema de grande e rico debate científico ao longo da Idade Média). O espírito cobra a atenção que lhe é devida quando a atomização dos problemas que nos aterrorizam acaba por deixar escapar a única coisa que perpassa a sociedade cindida, o único elemento de transcendentalidade que poderá restaurar algum sentido de ordem no mundo. Primeiro o espírito deve ser atendido, só então as demais estruturas, produtos do espírito que nos anima, serão transformadas.
A negação da metafísica (nome pelo qual os filósofos acharam por bem chamar o domínio do espiritual, fazendo uma aproximação talvez um tanto grosseira) é a negação do transcedental, e nos reduz a meros animais. Não é de surpreender, por tanto, que atos animalescos sejam cometidos por muitos em tempos de crise. Por causa dessa limitação imposta aos homens pelos homens, de não mais acreditar no espírito divino e na porção humana que dele participa, os horizontes das pessoas tornam-se tão claustrofóbicos que as lançam no mesmo desespero que agora se experimenta. E o desespero só conhece uma saída, ele clama por sangue, clama pela morte de si ou do outro.
Somente se acreditamos na transcendência podemos acreditar na medida única que perpassa todos os homens. Somente com essa medida podemos entender que há o certo e o errado. Somente assim podemos acreditar no pecado. A partir do momento em que o homem não mais é capaz de pecar, em que a moral é relativizada por ser exclusivamente imanente, questão de convicção pessoal, as pessoas são lançadas em uma espécie de psicopatia somente mitigada por uma vaga lembrança do espírito perdido na modernidade. Se não podemos pecar, não podemos nos arrepender e nem nos redimir. Se não existe redenção, a dimensão teleológica da existência nos falta e nos tornamos aleijados espirituais, sem rumo, sem objetivos últimos. É por isso que, ao ver os últimos acontecimentos, é fácil pensar nas pessoas como se fossem animais. De certo modo o são. De certo modo, por outro lado, somos nós os animais ao não ver nos outros uma essência de homens, ou por acreditar que estão além de redenção.
Diante deste descaminho quase absoluto do mundo só resta uma saída: a redescoberta do mal e a redescoberta de Deus. Falo da redescoberta do mal porque enxergamos o mal por uma lente distorcida. Kant estava correto em acreditar ser impossível fundar uma moral alheia à religião. O fato de não identificarmos o mal e a morte com o pecado nos impossibilita o acesso a Deus por meio da redenção que ele graciosamente oferece. É imperativo que redescubramos o estatuto verdadeiro do mal no mundo. Depois disso, precisamos redescobrir o estatuto do mal
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