Existe um abismo intransponível entre o ser humano e Deus. Isso foi percebido pelo primeiro quando se deu conta pela primeira vez que sua existência era finita, mas que outras coisas no mundo permaneciam inalteradas. Este insight fundamental deu origem às primeiras especulações a respeito da divindade e foi o fundamento sobre o qual a religião se estabeleceu. Tal é a interpretação que Eric Voegelin dá aos provaveis eventos, se não históricos, ao menos lógicos, na busca do homem pela ordem do ser.
É importante colocar as coisas desde a origem em seu devido lugar. Algo importante que Voegelin esclarece é que especulação teológica é uma especulação sobre a realidade. Este dado fundamental deve ser considerado e me parece ter sido esquecido. O pensamento especulativo voltado para a natureza acabou por se afirmar com tal firmeza no pensamento ocidental que temos às vezes a impressão errada de que a teologia não diz respeito à realidade. A sanha desmistificadora de pretensos cientistas, aliada à confusão causada pelas seitas e pelos cultos que acabam por falsificar a verdadeira religião (um dado quase tão antigo quanto a religião em si, uma vez que a Bíblia já relata a existências de feiticeiros e divinadores que deveriam ser evitados) são fatores que nos atrapalham na tarefa de procurar uma compreensão abrangente da realidade.
Mesmo os cultos a divindades em forma de animais, divindades incorporadas em reis, deuses identificados com os astros, que muitas vezes são vistas em nossos dias como algo estranho, como uma espécie de crendice da infância da humanidade, são resultado da especulação teológica possível para aqueles que iniciaram tal atividade. Sua intenção era identificar aquilo que era perene, e separar do que era efêmero. Esta orientação da alma humana em relação ao eterno já é, mesmo nas suas formas mais antigas e pouco usuais para nós, um passo na “direção certa”, se o objetivo for um maior conhecimento a respeito da ordem do ser. Conforme a crítica corrosiva em relação à verossimilhança destas formas menos acabadas de especulação teológica foi colocando os velhos paradigmas em crise, o conhecimento mais perfeito do ser pode chegar à humanidade, com a revelação de Deus ao povo hebreu.
A especulação filosófica iniciou também a nossa conhecida ciência, ou, como já se chegou a dizer por um bom tempo, a filosofia natural. Tal especulação foi, assim como a teológica, uma tentativa de apreender a realidade, fosse a realidade da phisis, fose aquela que está além da phisis (metafísica). A atividade do folósofo também possui uma tônica: descobrir aquilo que é perene em meio a um mundo repleto de efemeridades. Descobrir os padrões e ciclos, as regularidades, as coisas que podemos saber ao certo sobre a natureza, sobre a alma, e assim por diante. O objetivo da especulação filosófica, a orientação em direção à sabedoria, acaba por ser identico ao impulso inicial da especulação teológica.
Desse modo, a reflexão filosófica e a especulação teológica são, conforme a perspectiva aqui adotada, irmãs. Esta consciência tem um profundo impacto sobre a mente que a percebe, uma vez que acaba por alterar uma série de pressupostos feitos de péssima metafísica segundo os quais não poderíamos nos reaproximar de Deus sem antes relegar a razão para um distante segundo plano. O desvendamento da vida espirtual assim entendida acaba por revelar ao homem que antes de suspeitar a extensão toda da realidade (embora não seja possível conhecê-la por inteiro) ele era menos que homem, era uma espécie de deficiente espiritual.
Quanto ao abismo, ele não é exatamente intransponível, mas sua transposição é um mistério tão tremendo, obra da graça divina, que seria inútil um esforço aqui de tentar abraçar também esta questão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário