sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Breve consideração sobre razão e fé.



Juan Donoso Cortés escreveu, em seu “Discurso académico sobre la Bíblia”, um trecho que considero belíssimo. Ele foi muito feliz ao proferir estas palavras e eu certamente fico contente ao repeti-las aqui:

“Hay un libro, tesoro de un pueblo que es hoy fábula y ludibrio de la tierra, y que fue en tiempos pasados estrella del Oriente, adonde han ido a beber su divina inspiración todos los grandes poetas de las regiones occidentales del mundo y en el cual han aprendido el secreto de levantar los corazones y de arrebatar las almas con sobrehumanas y misteriosas armonías. Ese libro es la Biblia, el libro por excelencia.”

O testemunho daqueles que foram inspirados por Deus e legaram ao mundo uma palavra tão excelente e tão proveitosa, cuja mensagem contém o próprio segredo da vida eterna, segredo este que é anunciado, estranha ironia, se nos apresenta de maneira por vezes misteriosa, por outras bem clara. Podemos ler “o livro por excelência” inúmeras vezes, e sempre estaremos diante de algo completamente novo.

Em termos experienciais, creio que foi Eric Voegelin quem teve o insight fundamental a respeito da Bíblia, ao enquadrá-la na categoria de registro, em termos humanos (vale dizer: com símbolos humanos), da experiência da dimensão espiritual da realidade, conferindo ao cristianismo (tradição hebréia aliada à sabedoria grega que permeava a cultura no contexto neotestamentário) a posição de primazia entre todos os credos, por ter alcançado a maior diferenciação dos símbolos que representam a verdade existencial experimentada (Evangelho e Cultura, trad. Mendo Castro Henriques).

A experiência que levou à composição dos livros da Bíblia, embora tenha ocorrido a diversos homens ao longo de muitos anos, a força da revelação e inspiração divinas acabaram por inspirar centenas de gerações ao longo de muitos anos, na política, nas artes, somos constantemente inspirados e lembrados do que é a verdadeira grandeza de Deus, e somos encorajados a imitá-la.

Embora este processo envolva a experiência, e esta tenha um poder muito grande sobre nossa maneira de enxergar a religião, não é, nem de longe, algo suficiente. Voegelin fala em duas etapas, a experiência e a simbolização. As simbolizações acontecem na história, isto é importante, especialmente para Voegelin, de modo que existem entre elas graus variados de diferenciação, como já mencionamos. Conforme uma visão mais adequada da realidade como um todo – ou seja, considerando a dimensão do espírito no todo da realidade. Dentro desta perspectiva, da simbolização e da diferenciação, a filosofia, o uso da razão, não é uma atividade superior à simbolização religiosa, como querem crer muitos filósofos desde o iluminismo até (e principalmente) hoje. A revelação lança bases por demais sólidas para não serem percebidas como essenciais para a vida e para o pensamento humano. A história não pode ser usada para justificar ou tentar compreender o processo pelo qual a Bíblia chegou a produzir tamanhas maravilhas dentro das sociedades e da cultura ocidental, mas é antes uma forma de compreender a ação soberana de Deus, o qual, justamente por meio de sua revelação, nos presenteou com a própria noção de história tal como a temos hoje!

Esta perspectiva constitui um argumento de peso para qualquer projeto de cosmovisão cristã, uma vez que reconhece que, ainda que a revelação e a sabedoria humana não sejam intercambiáveis, esta tem muito a aprender com aquela, especialmente se cremos que a palavra de Deus é, de fato o princípio da sabedoria. Corretamente nota Donoso Cortés no Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo: “La teología, por lo mismo que es la ciencia de Dios, es el océano que contiene y abarca todas las ciencias, así como Dios es el océano que contiene y abarca todas las cosas.” A partir daí, posso ver que de certo modo a pergunta fundamental sobre a relação entre religião (cristã) e filosofia vem sendo feita de forma incorreta. Não deveríamos perguntar se a filosofia pode ajudar a interpretar e entender a Bíblia (embora eu acredite que pode contribuir na interpretação bíblica, jamais como padrão externo, mas como um meio de aprimorar a capacidade de raciocínio do intérprete) mas sim como a Bíblia pode lançar luz sobre o caminho da filosofia, orientando-a pela senda da sabedoria.

6 comentários:

Henrique (in)Sana disse...

Você seria um desafiante à altura da atéia que, com um jogo de cintura AAA+ e retórica aplaudível, conviveu 30 dias com uma típica família de cristãos norte-americanos....

Check it out my friend:

http://video.google.com/videoplay?docid=1701937330320385668

Unknown disse...

Tá sabendo que seu artigo foi comentado no True Outspeak pelo Olavo? Tá famoso, Tiago! hehehe
Beijos.

Anônimo disse...

Tiago,

é a primeira vez que visito seu site, segui a indicação do Olavo em seu último Blog. Parabéns pelos artigos e pela linha que vc segue em seus pensamentos.
Só tenho uma questão, eu já li que o Donoso Cortés foi um dos inspiradores dos regimes facistas na Espanha e na Itália, isso é verdade? Qual a relação entre o seu pensamento e extrema direita? Ele sugere isso de alguma forma em algum texto? Ainda não li nada dele, por isso que te pergunto.
Grato,

Bernardo (espiritosantense@ibest.com.br)

Anônimo disse...

Franciscano que lê Voegelin? Novidade... Qual turma? Depois, com tempo, passo para ler o blog direito.

Tiago Ramos disse...

Henrique, obrigado pela dica, nos vemos no casório, rapaz (como estamos sérios, hein...)

Isa, Obrigado pelo aviso. Fiquei super contente com a menção. É o tipo de coisa que anima a gente.

Bernardo, a primeira vez que ouvi o nome de Donoso Cortés, foi na boca do Prof. Roberto Romano, da Unicamp. Ele falou justamente isso que você me disse. O que me levou a ler Donoso Cortés foi constatar que o mesmo Romano era grande divulgador de Denis Diderot, o que considero, no mínimo, altamente suspeito. A estratégia de colocar o facismo na conta do conservdorismo é antiga, mas considero um exagero. O seu trabalho foi utilizado, de fato, por Karl Schmidt para justificar o facismo na europa, no entanto, o próprio Schmidt não estava propondo nada que Hans Kelsen já não dissesse na Áustria e depois nos EUA, e que já estava em Cortés, ou seja, que o poder é que determina os rumos do estado, pois a constituição é estabelecida por um ato de poder (guerra, revolução, etc). Esta análise não tem ideologia, tanto prova que a esquerda no mundo todo adora estudar Schmidt, para justificar seus desmandos. Foi a constatação de que esta era a realidade do poder que levou Cortés a apoiar a teocracia católica, crente que orientada por princípios bíblicos a igreja poderia salvar o homem de si mesmo. A verdade é que o sujeito conservador tem um apreço por instituições estáveis e está disposto a consentir em um estado forte se isso puder evitar o banho de sangue revolucionário. Para quem nasceu logo após o banho de sangue napoleônico (como Cortés) creio que seja até compreensível.

O que se percebe é que Cortés teve um insight fascinante sobre as revoluções, de que viriam inevitavelmente e seriam seguidas de governos autoritários. Ele preferia governos autoritários regidos por instituições como a Igreja ou a monarquia do que governos de homens imbuídos da idéia de revolta contra Deus (Voegelin encontra seu antecesor aqui, impressionante não?).

Um artigo bacana sobre Cortés está no seguinte link: http://www.filosofia.org/mon/tem/es0026.htm

Dê uma olhada, vale a pena.

William, sou da turma 175, mas ainda tenho uma DP para matar, reprovei por falta (sabemos bem que faltar lá na Sanfran é algo até um pouco necessário, especialmente para quem quer estudar). O gozado é que os Franciscanos tem dois volumes de Order and History e a Nova Ciência esperando intocados na biblioteca e ninguém sequer lembra deles, né... E você, de que turma é?

Muito obrigado a todos,

Abraços,

Tiago

Anônimo disse...

Tiago,

Ingressei na 176 (você vai se formar com ela). Tranquei no ano passado e agora estou na 177.

Realmente, às vezes a gente se perde na conta das faltas... No momento corro o risco de pegar DP em uma matéria por isso.

Bom, depois volto para ler. Estou preparando agora um seminário de tributário.