Muitas vezes escrevo sobre filosofia ou política, algumas vezes sobre arte, principalmente sobre música. Sempre achei um exemplo acabado de cretinice, principalmente por parte dos artistas, misturar as duas coisas. Vou tentar escapar de minha censura auto imposta e me aventurar a fazer essa mistura, pois é necessário ressaltar os exemplos formidáveis de artistas que, sem sequer fazer propaganda política, e dizendo mais com sua postura do que com manifestos e coisas do gênero, são capazes de se insurgir contra o mal imposto a milhares de homens e mulheres por governos opressores.
Um dos artistas que mais amo e admiro é o violonista cubano Manuel Barrueco. Não falo apenas do artista celebrado nas salas de concerto do mundo todo, nem do professor dedicado do Peabody Insitute, parte da John Hopkins University, em Baltimore, Maryland. Falo de um artista com alma, que transparece não só nas interpretações musicais, mas na aguda consciência que parece muitas vezes esquecida, em relação ao sofrimento humano.
No documentário Manuel Barrueco, a Gift and a Life, ele reconta, entre outras coisas, a situação que o levou a aportar em Miami no ano de 1967. Barrueco se recorda que ainda novo, em Santiago de Cuba, via os revolucionários chegando pela rua, suas fardar verdes, as barbas, após a derrubada do governo cubano pelos guerrilheiros de Fidel, como se fossem anjos. Logo após ele conta como ficou desapontado, ao ver as liberdades de seu povo caindo uma por uma, e como ficava preocupado com sua mãe, que não se contentava em pensar ou falar somente coisas aprovadas pelo governo.
O artista (e aqui eu falo de artista em um sentido estrito, não dos tratantes que se auto intitulam artistas) passou pelo processo de esperar por cinco anos antes de ter sua saída de Cuba aprovada, junto com a família, e narra como se deu sua chegada aos Estados Unidos. Quando finalmente saiu, foi uma das experiências mais dolorosas de sua vida até hoje. É uma história comovente, na qual fica a profunda impressão de uma dor e uma tristeza pela necessidade de deixar a terra natal. Ele demonstra uma grande simpatia pelos refugiados cubanos que, desesperados, se lançam na água em botes precários para alcançar a liberdade. E leva este sentimento muito a sério.
Seus amigos ouviram dele em primeira mão o drama de não ter liberdade, não poder sequer deixar seu país, por pior que isso possa ser, para buscá-la. O problema político é tão grande para Barrueco que ele não vai visitar a irmã que não vê há anos por não se permitir ir a Cuba enquanto Fidel e seu regime se mantiverem na ilha. Um dos mais dolorosos desapontamentos que sofreu foi ver seu grande ídolo, o compositor Leo Brouwer, manifestar apoio ao governo cubano no episódio da execução das pessoas que tentaram seqüestrar um barco e fugir da ilha em abril de 2003. O grande amor por Cuba deste refugiado, que prosperou nos EUA por seu talento e trabalho, é realmente tocante.
Tamanha integridade, quando seria mais fácil voltar e ser muito bem recebido em Cuba, seu testemunho do sofrimento causado pelos revolucionários que põe a causa acima das vidas alheias (poucas vezes das próprias, a menos que sejam inocentes úteis colaborando com o que nem bem conhecem) é algo a ser aspirado e imitado. Fico imaginando se ele talvez não volte por saber que a Cuba que encontrará não será a sua Cuba, aquela da qual tem saudade, e sim uma ilha desfigurada por tantos anos de construção do "paraíso socialista".
Quanto à arte de Barrueco, creio que haja pouco que eu possa acrescentar além do que os jornalistas, críticos, público e as próprias gravações já deixam claro. É um grande astro do violão erudito hoje, certamente o mais brilhante de sua geração (confesso isto apesar de todo o respeito e atenção que dedico a Sharon Isbin, David Tanenbaum, Eliot Fisk...), certamente um intérprete que não será esquecido nos anos por vir. Longe de ser um conservador na música como o era Segovia (bem, Segovia sempre me pareceu um conservador em praticamente tudo, um tipo bastante old fashioned, o que para mim nunca foi demérito) Barrueco procura fazer pontes entre a música erudita e as demais formas de expressão musical, tendo feito álbuns dos mais interessantes como Nylon and Steel (com Al Di Meola), Sometime Ago e Manuel Barrueco Plays Beatles.
Muito embora prefira o Villa-Lobos dos irmãos Assad ao de Manuel Barrueco, tenho cá comigo que ele foi excepcionalmente feliz em todas as interpretações que escutei. Seu Bach soa como música feita diretamente para o céu, como, na minha opinião, Bach deve sempre soar. O álbum de Bach e deVisée é um dos álbuns que mais me marcaram (com a Partita no 2, BWV 1004 in D minor de Bach, a obra que me introduziu ao violão erudito) e sempre lhe serei grato por me ter proporcionado tão bons momentos na companhia de sua música. Um aparte pessoal: lembro de ter gravado na TV e assistido com meu amigo Eduardo uma apresentação de Barrueco em que ele tocava o Concierto de Aranjuez e algumas coisas do Chick Corea. Assistimos a fita tantas vezes ao longo dos próximos meses que ela quase não resistiu. Passavamos horas contemplando o vídeo, os olhos fixos nas mãos do violonista. Esse tipo de fascinação não é inédito em se tratando de um músico verdadeiramente extraordinário.
Longe de ter uma técnica calcada somente na velocidade, como acusa Luís Nassif (um homem que, a meu ver, entende tanto de música quanto Bob Esponja entende de Leibniz), Barrueco apresenta uma sensibilidade tão grande a ponto de fazer com que nos esqueçamos dele e sintamos, deliciados, música pura passando por dentro de nós. Sua sensibilidade é integral, artística e humana. Sua história é inspiradora. Por estas razões rendo minha homenagem ao grande artista Manuel Barrueco.