segunda-feira, agosto 18, 2008

Louvorzão

Já existe um debate um bocado acalorado em andamento a respeito da maneira e conteúdo do louvor nas igrejas evangélicas. Diante da crescente massa de palpites dados a respeito, e do interesse que tenho pelo tema (enquanto freqüentador ocasional de cultos), achei por bem dar meus próprios pitacos a fim de tomar posição em relação ao problema que já causou não poucas dissensões nas igrejas.


A despeito do meu horror a dicotomias simplistas temos, grosso modo, dois pólos disputando o destino do “momento de louvor”. O primeiro deles busca uma liturgia tradicional, com os hinos consagrados nos cantores e hinários, normalmente o grupo é composto de irmãos mais velhos (sou um escritor antiquado, não acho que velho seja ofensa e jamais aderirei ao neologismo politicamente correto “melhor idade”), pastores comprometidos com a ortodoxia teológica e membros que, a meu exemplo, são jovens com alguma preocupação intelectual no que se refere ao conteúdo da mensagem proferida durante a liturgia em todas as suas formas. O segundo grupo costuma ser mais jovem, envolvido com as bandas que tocam na igreja, consumidores de música gospel e preocupados com uma efetiva transmissão de emoção no culto, bem como com o impacto da mensagem a ser proclamada.


Primeiro um pouco de história. Entre os protestantes, os luteranos foram os primeiros a utilizar hinos que incorporavam o cancioneiro popular alemão da época de modo a produzir, em 1524 o Pequeno Livro de Canções Espirituais. Lutero mesmo foi responsável por algumas dessas composições, além de ter iniciado a tradição dos chorales cujo ápice da perfeição foi atingido por Johan Sebastian Bach. Bach, no entanto, não era bem visto pelos pietistas, que favoreciam uma música mais simples, era sim querido dos luteranos, entre os quais podia exercitar sua arte como mais gostava. Já anglicanos e reformados não compartilhavam o entusiasmo luterano por hinos de composição livre, acreditavam adequados somente os hinos contidos na Bíblia, os Salmos em particular. A idéia era de que seria imodesto pretender compor algo mais perfeito do que a Palavra já dispusera nas canções que contém. Ah, e sem instrumentos. Mais adiante na história, Calvino, entre outros, introduziu a paráfrase de Salmos para que a congregação cantasse. A idéia era que a congregação conseguisse também memorizar os hinos e assim ter algum proveito em sua educação teológica. Tal era o intento de John e Charles Wesley, cujas composições e adaptações ajudavam na compreensão da teologia envolvida nos temas cantados. Dessa maneira a Inglaterra abraçou os hinários. Nos Estados Unidos, embora os hinos tenham levado mais tempo para se desenvolverem, especialmente dada a ênfase puritana na simplicidade em tudo, foi estabelecida após a Guerra Civil uma tradição de spirituals e, durante o avivamento durante o século XIX, surge a música gospel, combustível dos revivals que varreram o país convertendo milhares. A notoriedade dessa música estava no impacto que ela trazia enquanto meio de evangelização (breve nota: foi o estilo musical que formou e marcou a carreira do rei do Rock and Roll).


Os mais recentes desenvolvimentos da música na adoração, com o advento do movimento carismático em especial, são o xis da questão. São a corrente abra;cada pelo segundo grupo mencinado na disputa pelo louvor. A música produzida nesse período e por esta corrente procura acima de tudo estimular a emoção e a imaginação do ouvinte, caracterizada por alguns como apelo ao lado feminino das pessoas, por outros como porta de entrada para alguma medida de êxtase místico espiritual. (Não disputo a validade de uma busca por tal sentimento, mas a maneira pela qual isso se dá é algo que tem um profundo impacto sobre a vida de uma congregação diante de Deus.) Quando se chega a esse ponto, já se pode imaginar, a razão saiu pela janela. Estaria o primado do pregador na cultura evangélica ameaçado? Por quê?


Fico matutando, em meio à disputa sobre o louvor na igreja, que se o principal objetivo é o cumprimento da grande comissão, e presumindo que estão em atrito dois grupos de cristãos sinceros, então só restariam duas questões a se resolver: a forma da mensagem e o conteúdo da mesma.


A forma da mensagem, no caso da pregação, favorece a persuasão racional. Trata-se da maneira mais fácil de provar por A mais B que Jesus ama o pecador, morreu por ele e que Deus irá chamar seus escolhidos para viver eternamente no céu. Falando desse jeito fica chato, embora preciso. Existe uma infinidade de nuances teológicas a ser explorada e a firmeza da fé de uma congregação, sua compreensão da consistência da fé professada – algo freqüentemente ignorado por uma geração que não viveu os dias em que se levava a fé a sério e em que os embates contra certos elementos nocivos dentro da igreja eram ferrenhos – depende em grande parte do que é exposto na pregação. Justamente por conta da forma expositiva, a mensagem pode ser analisada e inclusive criticada quando é o caso. Nossas defesas psicológicas estão normalmente em alerta quando lidamos com o discurso que declaradamente defende certas idéias.


A forma da música de louvor contemporânea, além da facilitar a memorização da mensagem, como já bem sabia o velho Lutero, pode ser usada para potencializar o efeito da mensagem. Isso ocorre por meio do apelo psicológico natural que o discurso em forma poética – embora isso seja muitas vezes feito com a poesia mais canhestra ultimamente – possui. É um bom meio de convencer. Acrescente-se a isso que no momento do louvor a congregação canta junta, o conforto e a afirmação encontradas nessa atividade (como bem explica a psicologia de massas) derrubam as defesas psicológicas que o indivíduo possui. O discurso em primeira pessoa, carregado de símbolos sentimentais (que renderam milhões a diversos cantores, bandas e duplas sertanejas) aplicado ao louvor, vira instrumento poderoso de evangelização, mas também pode servir como poderoso alienador das mentes dos que cantam sem refletir.


Eis o ponto ao qual gostaríamos de chegar. A reflexão, o culto racional a Deus, é o que permite ao cristão conservar a fé intacta, sem se corromper. É um dos pilares da Reforma a reflexão séria a respeito da pessoa, do caráter, das obras e do plano de Deus. Como a breve exposição histórica mostra, grandes teólogos dedicaram sua atenção à construção de um hinário consistente com suas visões teológicas. Os efeitos do conteúdo sadio na forma musical foram vistos pelo mundo todo. Hoje, ao invés de servir como apoio à pregação, a música está em muitos lugares se substituindo a ela. Conforme já expusemos acima, o trabalho expositivo pode ser relevado com alguma facilidade, os efeitos do louvor são mais sutis, porém mais duradouros. É como o velho teste. Ninguém lembra na sexta-feira como foi o sermão de domingo, mas muitos sabem quais as músicas que foram apresentadas. Mais ainda, são capazes de repeti-las.


Agora, como se não bastasse isso tudo, um elemento explosivo foi jogado nesse coquetel evangélico. Um elemento externo ao contexto específico da igreja e que afeta a todos os cidadãos igualmente: a imbecilização geral da população. As novas gerações – a minha é uma grande vítima disso – estão recebendo uma educação que mais parece uma piada de mau gosto. Muita gente dentro das igrejas não gosta dos hinos antigos (aqueles que possuem relevância teológica) porque é burra demais para entender o que dizem. Preferem cânticos mais atuais e mais fáceis, limitados na linguagem e no escopo, um movimento indesejável de afastamento do divino e aproximação com o humano. Não quero dizer que dedico menos amor a pessoas burras, mas é que existe tal coisa como a ignorância nociva. Não são poucos os que possuem uma tendência a considerar tudo o que não entendem como algo alheio ao seu interesse, o que não passa de uma grande cretinice. A poesia fácil de entender elogia o horizonte intelectual do ouvinte e o acomoda em si, ao invés de lança-lo em busca de um conhecimento mais completo do Deus. O emotivismo exacerbado e o apelo à experiência pessoal fazem com que o louvor que deveria dirigir-se a Deus trate principalmente da experiência humana. Não é de se surpreender que este tipo de música acabe se afastando, em umas tantas ocasiões, da sã doutrina. Os esforços de um pregador em estabelecer uma fundação teológica sólida para a congregação é solapada pelo trabalho do grupo de louvor, a despeito de suas melhores intenções. As letras compostas com o ouvinte em mente, mais do que a Palavra, acabam fazendo, por vezes mais mal do que bem, gerando uma série de problemas dentro da igreja e contribuindo para a crescente confusão de um público que por si só já não é e não se quer esclarecido.


Ainda resta um aspecto a ser esclarecido: e se o objetivo principal do louvor não for o cumprimento da grande comissão? A música na igreja possui também um outro papel não menos importante, qual seja a exaltação da glória de Deus. Nesse caso o argumento se complica. O caso é que a experiência musical é uma experiência bastante distinta da experiência humana do mundo. O caráter de contemplação pura da beleza de uma composição musical possui inúmeras semelhanças com a contemplação da glória de Deus. Em ambos os casos, nossa experiência destas realidades acaba em si mesma. Assim como a apreciação da música não serve em geral um propósito além de si, a contemplação da glória divina acaba onde começa, em Deus. Não é difícil imaginar a razão pela qual a música nos tenha sido dada, quando consideramos seu caráter quase extra-mundano (é claro que tenho agora em mente muito mais a música de alto nível). Nessa perspectiva de que a música é algo mais sublime do que normalmente cremos que ela seja, o papel do louvor afasta-se ainda mais da perspectiva meramente humana de causar emoções ou de ser facilmente assimilada pelo público. A música passa a cumprir um papel de adoração pura e simples, e uma música feita com o propósito de atender ao mínimo denominador comum humano (e assim ser assimilada e repetida pelo maior número possível de pessoas) é justamente a mais indigna de ser apresentada diante de Deus.


A verdadeira poesia, da mesma forma, presta-se a dizer - de maneira compacta e elegante, abrindo-se para uma pletora de significados - aquilo que a linguagem humana é incapaz de expressar corretamente, mas que é parte da nossa experiência. Não é à toa que a própria Bíblia é repleta de poesia. Dessa forma, nossas línguas e mentes imperfeitas podem transmitir um pouco da experiência da perfeição divina. Querer que a função da poesia seja meramente uma clareza didática e patética é aleijar o culto religioso de uma das formas mais apropriadas para louvar a Deus e contar quem Ele é. Que muita gente seja incapaz de apreciar, sequer no nível mais simples, a diferença entre a grande arte sacra e as coisas que se tem criado nas igrejas ultimamente é nada menos que um sinal dos tempos.


Sou levado, por estas razões, a concluir que a barreira entre o secular e o sagrado deve ser mantida em alguma medida, a despeito do desejo mais ardente de converter milhões ou de entreter uma congregação, ou corremos o risco de abraçar o mundo perdendo a Deus no processo.

2 comentários:

Wanda Maria Alckmin disse...

Muito interessante essa sua colocação, que vê a verdadeira música sacra como análoga à poesia, tentando exprimir o inexprimível. Nunca tinha pensado por esse lado, pensava nela mais na linha histórica (ajudar na pregação e memorização de passagens e salmos).
Concordo com vc em gênero, número e grau.
Abs,

Bernardo.

Tiago Ramos disse...

Bernardo,

Curioso como os protestantes tiverm ao longo dos anos uma certa dificuldade em encontrar a medida ideal no uso da arte dentro do contexto religioso (ás vezes combatendo completamente, às vezes assimilando demais a cultura laica). Não obstante, temos um legado um bocado positivo nessa área. Eu gosto muito da tradição dos hinários tradicionais e de muita coisa nova que surgiu em termos de música sacra, porém a liberdade da qual muita gente está gozando para criar artisticamente está passando dos limites da Bíblia, e esse é o grande problema objetivo que vejo na questão toda.

Confesso, no entanto, que o que primeiro me alertou para as dificuldades na área da música foi a estética mesmo. Não sei bem como articular esse sentimento, mas grosso modo acho que algumas coisas são genuinamente grotescas e ofendem a glória de Deus. Quando pessoas começam dar vazão a suas frustrações falando que moram perto da "Igreja Deus é Surdo", sou obrigado a reconhecer que existe algo errado com nosso testemunho. Se nem os vizinhos podem suportar um momento de louvor, alguma coisa não está funcionando bem. Quando percebi que havia uma série de problemas teológicos associados aos mesmos produtores desse barulho santo, vi que era hora de me preocupar e, pelo menos, falar algo a respeito.

A culpa não é toda das igrejas. O declínio da educação e o sumiço da cultura popular de qualidade pesaram muito no processo, mas nós deveríamos ter percebido isso antes. Perdemos um pouco de vista o papel da criação artística de refletir a beleza divina.

Um abraço,

Tiago