Curioso como certas coisas voltam à memória com uma força extraordinária, malgrado o decurso dos anos, e nos devolvem um pouco do que somos e já nem sabíamos mais.
O episódio recente, mais ou menos recente, teve a ver com o gosto que minha senhora insiste em manter pela teledramaturgia da Rede Globo. Ora, eu já fui, até pouco tempo atrás, um desses babaquinhas que achavam muito inteligente criticar a emissora. Primeiro criticava por ser direitista demais, depois descbri que não existia direita de verdade no Brasil e passei a criticá-la pelo motivo contrário. Hoje acho muito besta ficar analisando umas tantas puerilidades televisivas e "jornalísticas" do momento e me ocupo de analisar coisas mais interessantes, e vou de quando em quando umas tantas risadas ao lado da patroa assistindo TV em portugûes quando temos a chance, sem culpa nem arrependimento.
But, alas, I digress. O caso é que nessas ocasiões de convívio com minha adorável consorte, calhou de botarmos as mãos naquela curiosa minissérie que foi a Engraçadinha. Vejam bem, quando a série saiu, eu não pude assistir. Mamãe não me deixava por que o negócio era muito maduro para meus verdes olhos (o que não é dizer que meus olhos sejam verdes, como de fato não são), vovó dizia que era imoral, era pecado. Papai bem poderia ter dito que a coisa toda era uma bela putaria (termo dele, não meu) e que eu ganhava mais indo ler um livro.
Bom, pensei, por um lado terei carta branca para ver umas peladas na TV, por outro vou ter que agir muito sério e compenetrado. Não consegui me compenetrar, nem fingir seriedade. O melhor que pude fazer foi passar uns comentários de conteúdo profundamente moralista num tom incofundivelmente histriônico.
No fim das contas eu gostei da série, não pelos motivos óbvios, que já não sou mais moleque, mas porque a linguagem era deliciosa (e vejam que nem li o livro, mas parece se tratar de uma imitação bacana do estilo do autor), e pela trama, que era chocante e fascinante ao mesmo tempo. E ainda tinha o bestiário de imorais que o programa perfilava, me divertiu à beça ver a interação daqueles tipos humanos tão marcados, cada qual vestindo, falando, transpirando, seus pecados particulares.
Ao final da jornada, três pensamentos me assaltaram, mais um pensamento e seria uma quadrilha (ou bando). Aliás, alguém lembra qual foi a última vez em que foi assaltado por um pensamento? Inversamente, não passou por minha cabeça pensamento algum na única vez em que fui assaltado de verdade. Pois então, fui metaforicamente assaltado por três pensamentos, o primeiro foi que eu precisava logo ler mais alguma coisa do Nelson Rodrigues. O segundo foi que se eu tivesse lido Nelson Rodrigues, lá nos tempos de ginásio, teria me poupado a leitura de John Irving, que hoje não acho nem de longe tão interessante quanto o cronista pátrio. O terceiro, logo depois do segundo (naturalmente), foi que eu tinha sim lido Nelson Rodrigues, e tinha gostado.
Se tinha lido e tinha gostado, por que esquecera? O mistério de minha memória roubada (quem sabe por um pensamento assaltante?) me incomodou durante algum tempo. Foi então, algum tempo mais tarde, recém recuperado da bebedeira que seguiu a última vitória da seleção de Dunga sobre a Argentina de ninguém mais ninguém menos que Don Diego Maradona, lembrando de outros assuntos futebolísticos (na distante Dallas em que football é sinonimo de Cowboys, e da vida amorosa de Tony Romo) descobri a razão do esquecimento: Nelson Rodrigues me fez gostar de futebol.
Explico. Meu pai, professor de Educação Física, preparador físico e paisagista nas horas vagas, fez o possível para me interessar pela arte da bola, sem grande sucesso. Por acaso caiu-lhe nas mãos uma edição d'A Sombra das Chuteiras Imortais, a qual tomei emprestada e devorei com alegria. De repente o futebol pareceu interessante, não na tela da TV, ao som dos berros do Galvão Bueno, ou como o exercício suado das aulas ao sol das três da tarde; antes aparecia como o embate luminoso de heróis da bola de outras épocas. Passei a ver o esporte com outros olhos, projetado na tela imaginária que fazia as partidas muito mais reais que aquelas que acompanhava pela televisão.
Quando recordo as discussões sobre quem jogava melhor, os jogadores de antigamente ou os atuais, outra cretinice da qual me curei (menos uma entre muitas), vejo que o buraco é mais em baixo: os escritores daquela época eram melhores, os jogadores assumiam uma estatura e dignidade assustadoras por tabela.
Tudo isso para dizer que estou gostando muito de ler Nelson Rodrigues e como este feliz (re)encontro veio a se passar. E quem quiser que conte outra.
segunda-feira, novembro 02, 2009
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2 comentários:
Será que és tricolor como eu?
Bernardo, eu sou pontepretano. Sabe como é 100 anos sem títulos. Acho que esse é o maior teste da paciência brasileira...
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