Este texto é uma tentativa de colocar em ordem no pensamento as princiapis idéias contidas no começo do primeiro volume de Order And History, a monumental obra de Eric Voegelin. Essa tentativa de organizar as idéias expostas por Voegelin é de minha inteira responsabilidade, mas se for bem sucedida mais partes da leitura que estou fazendo serão publicadas. Sigo a mesma ordem dos capítulos do livro, pois isto é na verdade uma leitura.
Introdução.
Para Voegelin, a realidade e abarcada em sua completude pelo ser (being). O ser tem uma estrutura quaternária: Deus, homem, mundo (suponho que seja a chamada ecumene, mas não estou bem certo para afirmar) e sociedade. Os quatro elementos formam mais propriamente o que Voegelin chama de “comunidade do ser”.
Onde exatamente entra o homem nessa comunidade? A comunidade do ser é parte de nossa experiência na medida em que somos participantes dela. Experimentamos a comunidade por dentro, existimos nela, mas ao mesmo tempo temos consciencia disso. (Esta condição tipicamente humana é, alias um dos mais interessantes aspectos da antropologia filosófica e deve estar em mente ao longo de qualquer estudo de filosofia). O conceito chave aqui é participação. Para explicá-lo convém a metáfora de que o homem e um ator, e não apenas um expectador na comunidade do ser (esta idéia me lembrou imediatamente de Viktor Frankl, que disse a mesmíssima coisa em “Man’s search for meaning”). A participação no ser é o que chamamos de existência (lembrem-se aí que ser e existir são coisas distintas. Essência tem um carater mais perene do que a simples existência. Não sei bem quando essa lição foi esquecida, mas estudiosos de Santo Agostinho, por exemplo, sempre tiveram ocasião de lembrar que nunca era perguntado como se faz hoje, se Deus existe. Perguntava-se se Deus é). Mais exatamente o homem é uma parte do ser que consegue experimentar a si próprio como parte do ser, ademais, podendo usar a linguagem, o homem consegue chamar esta consciêcia que experimenta de “homem”. Assim, no ato da evocação, do chamamento do nome “homem” o homem constitui a si mesmo enquanto tal, e no entanto sai sabendo tanto quanto sabia na hora em que entrou, ou seja: nada.
O fato de que o homem é vitima de uma brutal ignorância sobre si mesmo que é chamado por Voegelin de “ansiedade da existência”. Embora o homem esteja numa situação em que é impossível ter conhecimento total do ser (porque o homem é parte do mesmo ser), é possível saber algo acerca da ordem do ser. A fim de conhecer a ordem do ser, o homem recorre então aos símbolos como forma de se lançar para além do conhecido e do conhecível.
O processo de simbolizção possui alguns aspectos típicos que convém apontar.
1.
Predominância da experiência de participação. A comunidade do ser é experimentada como algo muito próximo dos homens. Existem elementos da natureza, como plantas, animais, rochas, etc, imbuídos de vontade e sentimentos. Em muitos casos, esses elementos podem ser homens ou duses transformados. Não se vê fronteira rígida entre homem, deuses e natureza, todas as coisas podem se tornar todas as coisas (note-se aqui como a diferenciação nessa fase é pouco desenvolvida, o ser se apresenta ao homem como um todo bastante compacto).
2. Preocupação com a permanência (lasting) e a decadência (passing). Esta preocupação vazada em termos genéricos é bem conhecida de nós; vida e morte, criação e destruição. É a consciência, nessa fase, de que algumas pessoas vivem mais que outras, que a sociedade sobrevive as pessoas, o mundo dura mais que as sociedades e os deuses estiveram presentes antes a criação do mundo e estarão presentes depois de seu fim. Aí já se pode enxergar uma hierarquia, um princípio de ordem entre os quatro componentes do ser.
Assim, na existência experimentamos a mortalidade, pois o ser dura enquanto nossa existência acaba. No ser, negativamente, experimentamos a imortalidade. A experiência do ser pode colocar o homem em harmonia com o ser. Harmonia, no entanto, é uma tradução pobre para attunement, mas Voegelin define o termo no próprio livro: “estado da existência em que esta tende para aquilo que é permanente no ser...” (p.4). Sentimos que pertencemos ao ser ao qual retornaremos. Assim, muito mais que o medo da morte, ao perceber a finitude da existência, tememos perder nossa breve participação no ser. Esta é a faceta mais profunda da “ansiedade da existência” que Voegelin retrata.
3. Criação de símbolos para explicar por analogia o desconhecido ou incognoscível para fazê-lo inteligível. A analogia pode acontecer de duas formas: comparando-se a sociedade ao cosmos (microcosmos) ou comparando a sociedade ao homem (macroanthropos).
Estas formas aparecem cronologicamente nessa ordem. A primeira surge naturalmente, a segunda surge após a desintegração do império simbolizado como cosmion (microcosmos). O modelo para a simbolização da próxima forma será então a alma humana ordenada, orientada na direção de Deus, e nela se vê o padrão pelo qual ordenar a sociedade. Tal transição é o que Toynbee chama de época de turbulência (time of troubles). Assim, diante da crise, a sociedade cosmológica acaba por alterar a sua simbolização do ser, da ordem visível, imanente do cosmos para a ordem invisível, transcendente, do ser, experimentada nos movimentos da alma humana.
4. O homem percebe que a sociedade é simbolizada por analogia, por causa da pluralidade de símbolos possíveis, nenhum deles, creio eu, exato em sua represntação, por força da relação mesma de analogia. Desse modo, os símbolos diversos convivem lado a lado e há ma tolerância grande entre as diversas sociedades e os símbolos que as representam.
O limite do simbolismo cosmológico é atingido em uma civilização quando a reflexão sobre os símbolos faz com que sejam julgados inadequados (falta-lhes verossimilhança, diria Xenóphanes). Os deuses começam a aparecer dentro de uma hierarquia, depois, vem a fase limite do sumodeísmo na teologia. Deuses, posteriormente, passam a ser vistos não mais como fortes ou fracos, mas como verdadeiros ou falsos (a Bíblia, no Velho Testamento, tem várias passagens que mostram essa visão da teologia). Esse movimento indica uma aproximação cada vez maior do monoteísmo.
O que toma lugar então é chamado por Voegelin de “ênfase de diferenciação na área da ignorância essencial” e “conseqüente distinção entre a realidade imanente cognoscível e a realidade transcendente incognoscível”. (p.9). São estes os avanços conseguidos na superação do modelo cosmológico.
Nesta fase de mudança, o homem deixa de procurar a ordem do ser na sociedade ou na natureza e começa a olhar para Deus em buscada ordem. É isto que se pode chamar de Conversão. Não é algo que é causado pelo homem ou pela sociedade, mas algo que acontece com o homem ou a sociedade. Este evento é chamado de “salto no ser” (leap in being), conceito importante neste e em outros estudos de Voegelin. Nossa participação “mundana” no ser, seu aspecto imanente ligado à existência e cercado pela finitude não acaba com a conversão e o salto no ser. A parceria (partnership) com Deus deve andar lado a lado com a participação na velha existência. O homem deve andar a partir daí consciente de ambas a velha e a nova verdade sobre o ser.