Em termos de música existem três acontecimentos que foram essenciais em minha vida. Não fosse por eles eu certamente não seria o mesmo. Os três foram, em ordem cronológica, O Concierto de Aranjuez de Rodrigo, Kind of Blue de Miles Davis e finalmente a mais recente adição ao panteão: Time Out, do Dave Brubeck Quartet.
Imagine um garoto interiorano, caipira mesmo, com uma grande paixão por piano e objetivo muito claro na vida: crescer para virar vaqueiro. Dave iria cuidar da fazenda do pai e criar gado, até que um dia recebeu sua convocação para participar do esforço norte-americano de guerra contra o nazismo. Para a sorte dele, e para a minha, anos depois, a missão que recebeu foi participar de uma banda de jazz que iria entreter as tropas durante a campanha.
Gosto bastante dessa história, não só por que conheço bem o que passa pela cabeça de um garoto caipira (como só um garoto caipira podera conhecer), como me agrada a leveza com que o pianista Dave Brubeck a conta, o sorriso no rosto, a mesma leveza com a qual ele interpreta suas músicas.
A música de Brubeck soa extremamente moderna, para mim ao menos. Parece o tipo de música que as pessoas iriam ouvir no futuro, com seus ritmos sempre mudando e surpreendendo, com belas melodias, sem drama, sem dor, sem raiva... Ouço a música sentindo uma certa nostalgia de um tempo que não foi o meu. Mas parece perfeitamente natural para mim empreender essa viagem, afinal me sinto constantemente preso a esse tempo que não é o meu. A velocidade das mudanças, a falta de limites de cada geração que chega, a falta de... elegância, de ritmo (ou de swing, como queira), são males da era atual aos quais não vou nunca me acostumar. Isso e a comida de microondas.
Sempre ouço dos amigos que falo de modo um pouco anacrônico, como quem lê um discurso. Falo mais ou menos como escrevo, o que sempre parece estranho, especialmente em ocasiões que não pedem nada desse formalismo. Em qualquer ocasião acabo fazendo isso porque sempre me parece a maneira de tornar mais claro o sentido que pretendo transmitir. É justamente este atributo que transborda na música de Brubeck: clareza. Ela soa límpida, complexa e ainda sim agradável, inteligente, como deveriam ser todas as idéias, não só as musicais.
Time Out é uma album pouco usual dentro do jazz de sua época, foi lançado em 1959, pelas escolhas de ritmo feitas pelo quarteto para suas músicas. Somos constantemente surpreendidos pela mudança de ritmo, porém nem de longe somos tomados por confusão ou desnorteamento (o que é muito comum na música contemporânea de cunho vanguardista), o ritmo cambiante parece perfeitamente natural quando executado por mãos tão hábeis. Bem antes das incompreensíveis revoluções do free jazz, enquanto Miles Davis ainda fazia seu delicioso cool interpretando baladas românticas, Dave Brubeck e seu quarteto mostravam algo novo, inusitado e surpreendentemente criaram ao mesmo tempo um album clássico e popular.
Em todas as formas de arte essa é uma combinação rara. A inspiração nem sempre obedece à percepção do que o público esteja pronto para ouvir. Tal confluência só adiciona mais sabor à mistura ritmica e melódica que faz desse um disco tão gostoso de ouvir e ao mesmo tempo tão desafiador enquanto ideal artístico.
Agora algumas considerações de natureza diversa.
A importância de Time Out no plano pessoal se traduz no fato de que, como idéia, compreendi algo do album e tentei não só traduzir em palavras o que percebi, mas também assimilei muito do que escutei num nível mais... subcutâneo, por assim dizer. O meu encontro com essa espécie de música me deixou mais afastado do pessimismo dramático normalmente reinante em minha cabeça. Esse distanciamento me faz sentir tão aliviado que mal posso descrever o quanto.
O mais interessante é que pude ver como uma idéia musical pode ser valiosa, não para fins terapêuticos ou para diversão pura e simples mas no campo intelectual. Esse tipo de percepção nem sempre me acompanhou, especialmente quando a música me falava muito prontamente de emoções que eu, por meu lado, já estava predisposto a abrigar.
O último ponto que me falta percorrer nesse pequeno e irregular itinerário mental é certamente dizer que essas músicas que tanto me agradaram não tratam de amor, como Blue in Green ou Kathy's Song. E isso não me faz a menor falta. Sempre me considerei a cima de tudo um romântico e agora me descubro envolvido pelos prazeres de algo novo. Talvez seja por causa de Time Out que eu já não esteja mais clamando aos céus por algum novo insight sobre a mente feminina. Espero que dure um pouco antes que eu volte a ouvir aquelas canções tristes outra vez. Até lá é relaxar e aproveitar o passeio.
P.S. Eventualmente escrevo algo sobre Rodrigo também. Afinal ele é um dos mais emblemáticos representantes do que aconteceu de bom no século vinte.
terça-feira, novembro 23, 2004
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