quinta-feira, novembro 17, 2005

Problemas e mais problemas..

Refletindo um pouco a respeito de minhas deficiências intelectuais percebi que faltam em mim conecimentos maiores a respeito de duas áreas de maior importância para quem se proponha a trilhar um caminho na filosofia. Essa concientização poderia se aplicar aos meus interesses específicos mas, se por um lado vejo que muitos outros como eu padecem do mesmo problema, isso pode ser projudicial para a o avanço da filosofia como tal. Se eu estiver correto, isso explica porque hoje em dia muitos autores gostam de passar psicologismos por filosofia sem a menor dor na conciência, conforme diagnostica, por exemplo, Bryan Magee. Peço perdão pelo emprego de uma linguagem nada formal em boa parte do texto, mas a escrita é comandada mais pelo meu humor do que pelo propósito do projeto.

Lendo um pouco da matéria um sujeito moderadamente educado vai inevitavelmente descobrir que a filosofia deve se reportar essencialmente a problemas filosóficos. Em termos claros, o grande barato da filosofia passa longe do ideal do sábio que a tudo responde e consiste na capacidade de olhar para o mundo e propor as perguntas certas.

As perguntas, é claro, podem ter o mais variado conteúdo, desde que (veja que esta é a regra para a grande filsofia) sejam perguntas sobre o mundo. O filósofo de fato, vá aí listando os figurões cuja leitura realmente vale a pena, interpela o mundo para tentar compreendê-lo. Só depois vai interpelar os outros figurões a respeito de suas dúvidas e por fim, se a coisa ficar muito complicada, escarafunchar os escritos dos comentadores mais destacados. No fundo, grande parte do que se escreve sobre filosofia não é filosofia e nem muito menos é interessante. Seguindo essa ordem (com a insistência quase didática sobre o mundo, que sacrifica o estilo que porventura houvesse nesse escrito).

É por isso que quando escrevo sobre qualquer coisa parto de necessidades estritamente pessoais, são meus problemas e isso me torna a pessoa mais indicada para pensar sobre este conjunto específico de problemas e como seus elementos se relacionam; a partir daí a coisa toda ganha algum fôlego e tem alguma chance de virar filosofia se eu teiver a sorte, a habilidade e a dedicação de ficar bom na atividade. Mas esse parágrafo é uma nota de rodapé.

Queria mesmo chegar no começo da filosofia. A disciplina era ligada ao estudo da natureza justamente porque a filosofia e as ciências naturais tem um objeto em comum, a realidade. Isso quer dizer que existe a realidade, e por isso insisto que uma filosofia que negue a realidade por obra de algum idealismo ou solipsismo deve tratar-se de uma não filosofia. A origem comum das ciências naturais e da filosofia vai ainda mais fundo: os grandes problemas que ambas tratam são os mesmos. O que constitui a realidade, do que é feita a matéria, qual é o limite do universo, o que é possível conhecer, e muitas outras perguntas que não me ocorrem no momento mas que seguem o exemplo das precedentes.

Existe um outro lado da filosofia que não diz respeito às ciências naturais: o da a ética e da moral. A filosofia moral e ética (não me detenho com calma no vespeiro que é a distinção entre as duas, se de fato existe), é a que concerne a ação humana. Os problemas desta disciplina não dizem respeito ao mundo diretamente mas sim de uma certa atitude dos homem com relação ao mundo. É de natureza bastante diversa da filosofia natural por dizer respeito mais diretamente ao homem. Nesse campo os valores entram em cena e as perguntas com as quais Sócrates chocou o mundo da filosofia de tal forma que acharam mais fácil convidá-lo a suicidar-se (e é bem sabido que o filósofo aceitou a sugestão): o que é a justiça, o que é o bem, e outras dúvidas do gênero. A natureza mais sutil da matéria em relação a solidez física do objeto dos estudos da natureza é que acabou culminado num danoso relativismo que assombra nossa sociedade milhares de anos após o começo do pensamento filosófico.

Estes dois aspectos da ativdade filosófica estão ligados constitutivamente à disciplina, e infelizmente são negligenciados por uma parte significativa dos estudantes de filosofia. Nesse ponto é que meu problema pessoal aparece: não possuo uma formação satisfatória nas duas disciplinas que me habilitariam a fazer perguntas mais pertinentes a respeito destes dois aspectos da filosofia, a saber, a física e a teologia.

A teologia é o estudo da mais maravilhosa empresa intelectual de explicação do universo em cada pormenor. Partindo, mais uma vez, do ponto de vista pessoal, falo do cristianismo. A busca por Deus revela uma formidável sensibilidade para questões de cunho moral. Essa sensibilidade é tão grande que, ao considerarmos o fracasso das sucessivas tentativas filosóficas de fundamentar a moral sem apelar para a religião, não pode mesmo ter sido obra humana. A partir da teologia pode-se formular todo o tipo de pergunta sobre o homem no seu íntimo mais escondido e, com alguma atenção, receber respostas bastante satisfatórias. As respostas interessam aos crentes. As perguntas respondidas interessam a todas as pessoas, ou ao menos deveriam interessar.

A física marca a filosofia porque os problemas que ela encontra vão parar, mais cedo ou mais tarde, nas mãos dos filósofos. Com os problemas da física é que a grande filosofia foi construída e com as revoluções na física é que surgiram as revoluções filosóficas verdadeiramente dignas de nota (exemplos gritantes deste fato são as filosofias de Aristóteles e de Kant).

Por essas razões é que me parece que uma carência de conhecimento nesses campos seja uma grande pedra no caminho da compreensão da filosofia a partir de problemas reais e atuais, conforme creio ser o modo correto de entender a matéria. O problema de se ignorar estas fontes de problemas filosóficos é que corta-se a raiz que alimenta a filosofia e de modo a torná-la estéril.

terça-feira, novembro 08, 2005

Schopenhauer e o Cristianismo

Minhas incursões pela filosofia do sexo e da morte de Schopenhauer tem sido uma influência grande demais no que escrevo para não começar a incomodar. Todavia é irresistível a tentação de escrever desse modo, uma vez que é uma filosofia que atiça a paixão, fala à sensibilidade, parece ter a dor como tema central, e é no mais bastante intensa em repercussões artísticas de valor indiscutível, a exemplo de Machado de Assis e Richard Wagner e suas respectivas obras.

Essa filosofia é uma filosofia da morte. A negação e única saída para o sofrimento é o fim da vontade de viver. As consequências dessa busca são irremediavelmente a morte ou a mortificação do corpo, que é uma morte em vida. É uma filosofia que nega o mundo para salvá-lo. É paradoxal e contraditória em um único ponto, que é justamente o seu ponto central, sua ética e ao mesmo tempo sua escatologia.

O impulso sexual que deriva da afirmação da vontade de viver e que tantas mudanças causou enquanto idéia no mundo, via Freud (o qual não deixa de dar a Schopenhauer o devido crédito), se faz sentir na minha própria carne, sem apêlo e sem perdão. Se me inclino a ele, nos termos desta filosofia, o faço porque negá-lo seria uma mortificação e eu, sem me importar com o alegado caráter ilusório da vida, quero mais vida a todo o instante.

Mas essa filosofia não esgota o mundo. Não existe nada pior do que começar a explicar seu pensamento com base numa obra filosófica isolada, muito menos uma de consequências tão devastadoras quanto esta. Procuro, nos momentos em que não estou chafurdando nas torrentes irresistíveis da vontade da carne, nesse infindável ato de Tristão e Isolda que é o mundo por elas compreendido, procuro aproximar-me do conhecimento de Deus.

É justamente esse que me parece mais fugidio. O conhecimento está escrito e é fácilmente encontrado em diversas línguas na Bíblia Sagrada. No entanto, embora expresso e público, o conhecimento de Deus é elusivo porque é o único que não exige somente dotação intelectual, mas um ato (voltando ao discurso que ha pouco criticava) de vontade que por sua vez exige a negação da vontade mesma, dessa vez não para a morte, mas para a vida.

Em Cristo o fiel nega a própria vontade e mortifica-a para que a vontade de Cristo se realize nele. Como disse o apóstolo Paulo, não importa que eu viva, mas que Cristo vive em mim. Essa submissão à vontade de Deus, infinitamente maior do que a nossa, é uma negação da liberdade de realizar a vontade para poder ganhar a liberdade das cadeias da própria vontade conforme a entendemos já à luz da Bíblia enquanto vontade da carne.

A filosofia de Schopenhauer, ao negar a Cristo e a Deus categoricamente, nasce já uma filosofia limitada a entender o homem enquanto pecador e perdido e o mundo como o reino do maligno. Tanto que para Schopenhauer o nascimento e transformação dos santos é incompreensível. Não admira que não pudesse entender o que torna um homem santo, uma vez que jamais deixou de entender o homem como limitado à determinação da vontade carnal e assim o entendeu de forma tão extrema que a elevou a idéia constitutiva e ordenadora do mundo todo. Essa posição, vista da concepção mais ampla que é fornecida pelas escrituras e pela fé, parece agora risível, uma vez que o mundo só é sofrimento e vontade quando se é escravo do pecado.

Dessa compreensão resta pensar no problema fundamental que é escolher entre o sofrimento Schopenhaueriano e a morte e renascimento em Cristo. Por mais torturante que seja o sofrimento constante, a escolha por Cristo é mais difícil porque não partimos dela, devemos buscá-la, e mais, buscá-la de coração, e ainda, buscá-la enquanto é tempo. Qualquer pessoa tão determinada, dado que esteja consciente das implicações de sua escolha, possui dentro de si um poder imenso. Espero que eu encontre as forças de empreender a busca, não pela compreensão destas coisas, mas pela vontade de abraçá-las por inteiro, conforme o caminho que resolva tomar por fim.

sábado, outubro 29, 2005

O Fim das Coisas

Sábio é aquele que consegue olhar sempre antes para o fim de todas as coisas. Não importa o momento. O momento é insignificante diante do final triste da maioria das coisas belas que vivemos. As únicas coisas belas que perduram são as obras de arte, mas uma grande parte das melhores fala justamente da dor humana.

A dor possui um caráter mais perene. Ela se revela diante do sofrimento alheio e do próprio, e se o mundo está repleto de sofrimento, a alegria é ilusão. Estou me sentindo terrivelmente schopenhaueriano hoje, e é bem certo que este é o preço que pago por tentar conhecer melhor o mundo, bem como pelo erro de achar que, tendo-o conhecido, existe para mim alguma chance de ser feliz nele.

Nascemos da dor de nossas mães, a morte da própria carne provoca dor, o meio do percurso, a vida, é um exercício no qual alguns tentam esquecer a dor do nascimento, mas só porque não percebem que ao final lhes aguarda a dor da morte.

Minha maior dor, dado que nunca fui materialmente privado de nada que realmente necessitasse, é a solidão. É também meu maior medo. É esse medo que representa para mim a porta da entrada do mal. O medo da solidão subjuga a vontade e nos leva a nos rebaixarmos diante de qualquer desmando para conseguir uma migalha de atenção. Se a conseguimos, temos a ilusão de que passou o perigo. Ledo engano. É o engano de não olhar para o fim de todas as coisas. No fim, não somos interessantes, nem necessários, nem muito menos queridos. A única coisa que podemos fazer é implorar, não mais pela companhia que alivie a solidão, mas pelo esquecimento que nos oblitera e nossa solidão conosco.

Essa filosofia da morte expressa em linhas toscas é uma expressão direta de um desejo de morte. Nada mais acertado. Que vale seguir se a estrada acaba de forma igual para todos os homens, para todas as tragédias. A morte é a morte. É sempre igual a si mesma em seus efeitos últimos para a ordem do universo. A morte aviltada do bandido, a morte gloriosa do herói, a morte piedosa do mártir, a morte ignominiosa do tirano deposto, são importantes somente para os vivos, os iludidos pela idéia de que o fim que alguém procura ou que lhe é imposto serve para o mal ou para o bem. No fim, convivemos não com a glória ou desgraça da morte, mas com a dor experimentada em vida, e isso é que levamos até o momento do alívio final.

Minha dor de solidão, minha morte em vida, arranja sempre um jeito de me pegar. É que cometo o crime de ser honesto comigo mesmo no fim das contas. Quem sabe se pudesse me enganar por mais tempo eu fosse mais feliz, mas não é essa minha vocação, nem o auto-engano, nem a felicidade. Estou mais uma vez sentado só, ruminando uma maneira de aniquilar a esperança que já tanto me iludiu, procurando uma maneira de ter a coragem de abraçar de vez a solidão e, quem sabe sofrer um pouco menos.

terça-feira, agosto 23, 2005

A Woman's Question

Ao ler alguns poemas enquanto matava uma hora vazia da tarde, antes de voltar a estudar, fui surpreendido por um em particular. Li o texto, que fala justamente da dúvida de uma mulher em relação à natureza do amor de seu noivo. Lembrei que algum tempo atrás escrevi um pouco a esse mesmo respeito. Interessante notar que meu problema é mais antigo e afeta muito mais gente do que eu imaginava, afinal, para ter ido parar numa antologia de verso elizabetano o dito cujo deve ter feito algum sucesso. É um poema bonito, então achei por bem trancrevê-lo aqui.


A Woman’s Question

Adelaide Anne Procter (1825–64)


BEFORE I trust my fate to thee,
Or place my hand in thine,
Before I let thy future give
Color and form to mine,
Before I peril all for thee, question thy soul to-night for me.

I break all slighter bonds, nor feel
A shadow of regret:
Is there one link within the Past
That holds thy spirit yet?
Or is thy faith as clear and free as that which I can pledge to thee?

Does there within thy dimmest dreams
A possible future shine,
Wherein thy life could henceforth breathe,
Untouch’d, unshar’d by mine?
If so, at any pain or cost, O, tell me before all is lost.

Look deeper still. If thou canst feel,
Within thy inmost soul,
That thou hast kept a portion back,
While I have stak’d the whole;
Let no false pity spare the blow, but in true mercy tell me so.

Is there within thy heart a need
That mine cannot fulfil?
One chord that any other hand
Could better wake or still?
Speak now—lest at some future day my whole life wither and decay.

Lives there within thy nature hid
The demon-spirit Change,
Shedding a passing glory still
On all things new and strange?
It may not be thy fault alone—but shield my heart against thy own.

Couldst thou withdraw thy hand one day
And answer to my claim,
That Fate, and that to-day’s mistake—
Not thou—had been to blame?
Some soothe their conscience thus; but thou wilt surely warn and save me now.

Nay, answer not,—I dare not hear,
The words would come too late;
Yet I would spare thee all remorse,
So, comfort thee, my fate—
Whatever on my heart may fall—remember, I would risk it all!

sábado, agosto 20, 2005

Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir

Lá estava eu a ouvir Debussy, na monotonia solitária, e quero dizer absolutamente solitária, quase solipsista e angustiada, quando comecei a escutar as primeiras notas de seu quarto prelúdio para piano. A epígrafe da peça, seu título, é um verso desse poema de Baudelaire que agora publico. O post leva o nome do prelúdio.

Agora estou ouvindo o oitavo prelúdio, ainda do primeiro livro. Gostaria de conseguir um dia traduzir em palavras "La Fille aux Cheveux de Lin". Por enquanto basta dizer que me inspira aquela tristeza serena na qual fui, por costume, me viciando. Nada melhor, dentro deste espírito, do que as palavras do poeta.



Harmonie du Soir


Voici venir les temps où vibrant sur sa tige
Chaque fleur s'évapore ainsi qu'un encensoir;
Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir;
Valse mélancolique et langoureux vertige!


Chaque fleur s'évapore ainsi qu'un encensoir;
Le violon frémit comme un coeur qu'on afflige;
Valse mélancolique et langoureux vertige!
Le ciel est triste et beau comme un grand reposoir.


Le violon frémit comme un coeur qu'on afflige,
Un coeur tendre, qui hait le néant vaste et noir!
Le ciel est triste et beau comme un grand reposoir;
Le soleil s'est noyé dans son sang qui se fige.


Un coeur tendre, qui hait le néant vaste et noir,
Du passé lumineux recueille tout vestige!
Le soleil s'est noyé dans son sang qui se fige...
Ton souvenir en moi luit comme un ostensoir!

Baudelaire - Les Fleurs du Mal

sexta-feira, agosto 19, 2005

Salmo 32, 1-6

Enquanto estava refletindo a respeito das coisas que me incomodavam em mim mesmo, percebia sempre que ficava um bocado angustiado por não ver exatamente como sair das "enrascadas" nas quais minha própria personalidade me metia. Acho que ainda sou meu pior inimigo, de uma forma ou de outra.

Passando os olhos pela Bíblia um pouco a esmo e pensando nesses problemas fui então convidado a pousar os olhos no texto que transcrevo, o qual possui por referência o título do post, na versão NVI:

"'Como é feliz aquele que tem suas transgressões perdoadas e seus pecados apagados!
Como é feliz aquele a quem o Senhor não atribui culpa e em quem não há hipocrisia!

Enquanto eu mantinha escondidos os meus pecados, o meu corpo definhava de tanto gemer.

Pois dia e noite a tua mão pesava sobre mim; minhas forças foram-se esgotando como em tempo de seca. [Pausa]

Então reconheci diante de ti o meu pecado e não encobri as minhas culpas. Eu disse:Confessarei as minhas transgressões ao Senhor,e tu perdoaste a culpa do meu pecado. [Pausa]

Portanto, que todos os que são fiéis orem a ti enquanto podes ser encontrado; quando as muitas águas se levantarem, elas não os atingirão."

Fui refletindo sobre estas palavras sem muita pressa nem muito método, mas o que me ocorreu de interessante citar a respeito do texto é que ele traduz a necessidade que um homem tem de ser fiel a Deus em primeiro lugar e depois a si mesmo conforme seu coração.

É grande a quantidade de pessoas que praticam as mais diversas formas de auto engano, tentando encontrar no esquecimento ou em alguma teoria qualquer a saída para evitar lidar com as próprias falhas. Partindo do pressuposto de que não conhecemos ninguém tão bem quanto nós mesmos acredito ser absolutamente horrível o processo de olhar para dentro de si e encontrar alguém completamente diferente da auto-imagem que nos esforçamos por projetar.

O verso três diz: "Enquanto eu mantinha escondidos os meus pecados, o meu corpo definhava de tanto gemer." Esse padecimento de que fala o salmista é obviamente fruto da incapacidade de reconhecer o pecado como tal ou de admitir-se como autor ou, ciente de ambas as situações, de confessá-lo. Estes três processos são essenciais para que se possa lidar com a culpa. Curioso notar que foram escritos a bem mais de dois mil anos antes de qualquer psicologismo. A relação do homem para expiar a culpa aqui só é possível depois de ter sido esta admitida e por fim submetida à apreciação de Deus, que é o único capaz de perdoar.

Deus é o único que pode perdoar porque ele é que sabe exatamente o que se passa no coração humano. Não há, por tanto, uma necessidade externa de se confessar o pecado a Deus, que o conhece e que é descrito alhures como misericordioso. O valor da confissão é duplo: a admissão da culpa que possibilita sua expiação e o relacionamento com Aquele que é maior, de maior autoridade, pois em muitos casos o indivíduo que consegue chegar a ser de fato sincero consigo mesmo não é capaz de perdoar a si próprio.

O salmista, ao estruturar o salmo, já oferece a motivação moral para que a pessoa passe pelo processo de expiação da culpa: a oposição do homem feliz, aquele cujas transgressões foram perdoadas, e o homem infeliz, cuja mão divina faz gemer por conta da culpa que tenta ocultar em seu coração. O sofrimento aqui é físico, não é a angústia metafísica ou existencial. A alma chora e o corpo padece diretamente. Deve-se acabar com o sofrimento admitindo e confessando o pecado. O homem hipócrita é infeliz, pois tem consciência da mentira embora fique claro que não a tolera.

Esta temática é central nos evangelhos mas evidentemente foi herdada de fontes mais antigas. O perdão é a via de acesso para a graça que traz felicidade. Na verdade, o perdão constitui em si a graça, por ser imerecido pelo transgressor.

Trata-se de uma jornada de auto conhecimento tão profunda e radical que não só nos insta a reconhecer os traços de nosso caráter e o teor de nossas ações como também a ter a coragem de admitir como maus segundo algum padrão, o bíblico nesse caso particular.

A resposta para a questão levantada de qual seria o padrão a ser seguido está no verso que não citei aqui, o oito: "Eu o instruirei e o ensinarei no caminho que você deve seguir; eu o aconselharei e cuidarei de você."

O reconhecimento da transgressão passa pelo conhecimento do Bem. O bom proceder é antes conhecimento e depois prática. Não é apriorístico, é dado, e, todavia, intuitivo. É intuitivo na medida em que as verdades conhecidas precisam ser apropriadas pelo sujeito cognoscente e tornadas suas próprias para que possam ser intuídas de forma direta, sem que o mínimo proceder, o dia a dia, a vida prática, não exija considerações morais e operações mentais de julgamento moral mais complexas que inviabilizariam a vida. Daí o texto também dos Salmos cuja referência me escapa: "Escondi a tua palavra no meu coração, para não pecar contra ti." Conhecer, assumir e agir. É assim que a proposição de dever se torna prática necessária.

Segundo este esquema, podemos esperar o perdão e livrar-nos da culpa, para entrar no reino da felicidade e da bem aventurança. Pergunto, no entanto, se me basta formular esta reflexão para que possa viver de forma completa por ela. Seria eu de fato forte o suficiente para me livrar de qualquer traço de hipocrisia? Poderia encara meu rosto no espelho da verdade, que não hesita em revelar a feiúra que escondo do mundo? A decisão de dar esse passo é que pode indicar seu verdadeiro valor.

quinta-feira, julho 28, 2005

Da dúvida

O que fazer quando o coração duvida e o espírito falha?

Para as questões do mundo físico me parece que só a dúvida aprimora a ciência e a técnica. Parece também que para as questões do espírito o sentido é inverso, a dúvida é um mal que nos tira do caminho a ser trilhado.

Muitas vezes, não só nas questões religiosas como nas relações interpessoais, duvidar é um pecado. É um sinal de fraqueza pessoal que é projetada como crença na fraqueza do outro em manter a sua palavra. A dúvida é, de certa forma, uma maneira de ser cruel.

Escrevo a esse respeito não para repreender aos outros, e sim para repreender a mim. Aponto o defeito que identifico em mim porque me incomoda.

A insegurança, a fraqueza, o medo de perder o bem que nos é entregue e a ingratidão de achar que alguém vá necessáriamente tirar o que nos deu são os ingredientes que ensejam o surgimento da dúvida. Seja a palavra dada, seja o amor, seja lá o que for, se formos apegados demais, corremos o risco de nos pegar enfraquecidos, duvidar e até mesmo perder.

Perder porque a dúvida se volta contra outra pessoa. Porque a dúvida se dá ao duvidar de alguém. Não advogo que tenhamos uma fé cega em tudo e em todos, mas uma pessoa, para poder viver minimamente bem deve confiar em alguém ou em algo fora dela mesma. Nenhum homem é uma ilha.

Quando meu medo é maior do que eu, quando estou cansado ou triste, sucumbo e duvido, pergunto de forma insultosa a mim mesmo o que vai acontecer, e sempre imagino o pior. Essa é a razão pela qual finalmente formulei breve e racionalmente esses pensamentos, para identificar o mal e controlá-lo, barrar o apego, enfrentar o medo. Espero que mais esse mal, trazido à luz, desapareça.

domingo, julho 24, 2005

A Costela

Como alguns podem ter notado, desde que descobri, a pouco mais de quatro meses, que é possível que alguma pessoa além de mim mesmo se interesse por mim, tornei-me um romântico nojento. Esse texto é mais um da série, espero que faça algum sentido, se não fizer, removo o post. É que fica mais fácil julgar o raio do texto depois de publicado. Dedico, é claro, à minha namorada, cuja ausência me levou a falar sobre o amor mais uma vez.

Aí vai:

A Costela

Quando nos relacionamos com outras pessoas romanticamente, e é bastante comum que isso aconteça hoje em dia, nos relacionamos porque obviamente procuramos na tal pessoa algo que nos falta. Gosto de pensar que os homens andam sempre à caça daquela costela que lhe tiraram nos últimos dias da criação e que para reavê-la acabam por ter de levar uma mulher inteira. Essa não deixa de ser uma perspectiva interessante, e é sempre mais fácil entender as coisas por meio das histórias que aprendemos desde a infância (alguém poderia dizer que tem a ver com o papel do mito na sociedade, algo no estilo de Joseph Campbell, mas eu prefiro chamar de histórias, como algo que aconteceu muito tempo atrás). È também mais verdadeiro e cheio de sentido, não externo, mas interno; faz mais sentido para mim, e isso importa muito, já que posso relegar para momentos menos íntimos do que este, o cuidado com a objetividade.

Pois saí eu à caça de minha costela perdida, tendo por questão de honra a tarefa de recupera-la, mesmo que estivesse irremediavelmente ligada a uma mulher inteira. A busca pela mulher que caminha por aí com a nossa costela é algo que pode levar a vida toda. Fazendo um estudo de biografia comparada, a minha com a dos outros, e percebendo o quanto os homens são estúpidos, fico mais e mais surpreso ao notar que menos e menos gente se sente preparada para sair em busca da tal costela, meio que numa tentativa de adiar o resto de suas vidas.

Os métodos para empreender a grande busca são os mais diversos. Ao longo da história, homens já se insinuaram para mulheres nas mais diversas situações, com resultados discutíveis e variados graus de sucesso a depender do homem e do método empregado.

Nunca fui um predador da noite, do tipo que saía a procurar vítimas entre as nada inocentes mulheres que estivessem por aí e em função de algum motivo me chamassem a atenção, no entanto parece ser isso que todo mundo está fazendo. Engraçado notar que a maioria das pessoas não é muito seletiva, em especial se estiver com os sentidos entorpecidos por uma razão ou por outra. Eu tentava, na verdade, iniciar uma conversação com uma garota que me chamasse a atenção. Pode parecer uma bobagem, mas é que em certo ponto da vida (alguns chegam nesse ponto mais cedo do que outros) você se cansa de se divertir com as mulheres erradas e começa a procurar por alguém com quem conversar e em última intância, tomar o café da manhã e ler o jornal, ou alguma coisa assim.

O curioso é que justamente quando você não tem a menor intenção de fazê-lo você se apaixona. Não sou um desses chatos que fica enaltecendo o verdadeiro amor e falando que a paixão é passageira. Paixão, normalmente, é uma tremenda viagem. Você perde noção de certo e errado, esquece que um dia teve um cérebro, acredita que vai amar para sempre e que o mundo acaba amanhã. É gostoso, não faz mal se administrada em pequenas doses e ainda por cima há uma boa chance de se conseguir alguma diversão no processo. Você, nesse momento, não imagina, mas podem acontecer duas coisas: você pode estar certo ou pode estar redondamente enganado.

Em primeiro lugar, existe sim a possibilidade de você ter encontrado o amor da sua vida e ainda por cima estar apaixonado por ela. A expressão é batida, é brega, mas faz o serviço. Uma hipótese rara o bastante, admito, mas há precedentes. Não se sabe bem ao certo o porquê, mas certas pessoas acham umas nas outras o suficiente para que queiram passar o resto da vida juntos.

A maioria dos jovens não está calejada o bastante para reconhecer isso. Eu mesmo muitas vezes fico pensando se minha capacidade de julgamento é tão boa assim (no fundo acredito que sim, minha capacidade de julgamento é tão boa quanto imagino, mas já vi gente mais inteligente se enganar). O jovem sensualista ao extremo não consegue reconhecer ou, quando reconhece, dar o valor devido à gema rara que surge diante de si. Alguns mais velhos tem o mesmo problema, mas deve ser uma daquelas conseqüências do amadurecimento tardio que tem se tornado tão comum. O grande interesse, no geral, acaba sendo justamente a rotatividade de prazeres; a insatisfação constante nos impele de pessoa em pessoa, usando e sendo usados (sim, já escutei essa pelo menos uma vez, tive de concordar com a autora da frase) de modo que conhecer a pessoa que te completa pode ser um desperdício se você não está pronto. Pouca gente consegue ser otimista a ponto de encontrar o ser amado e ficar a seu lado como seria melhor.


A coisa ruim que pode acontecer é estarmos enganados. Toda a empolgação da paixão pode ter sido fundada sobre o nada. Acabada a mágica que nos fazia pensar que a história chegara ao fim e a busca estava completa, ficamos nós, parados, levando chuva no rosto numa estação de trem vazia com uma expressão estúpida, como o herói de Casablanca. Como dizia o poeta “quando o amor acaba, fica a realidade” (não me recordo quem é o autor da frase, mas serão bem vindos esclarecimentos a respeito).

Muita gente tem dificuldade em admitir que as coisas podem dar errado quando estão apaixonadas. Esse é outro problema comum. O casal pode ser completamente incompatível, não ter nada que os ligue a não ser aquela química fugaz, ou o medo da solidão, ou ainda alguma outra coisa mais sutil do que minha cabeça possa expressar em palavras. O que fazer? Os amigos provavelmente já sabiam, alguém pode ter tentado avisar, quem sabe? O momento em que a paixão acaba é aquele em que nasce a tristeza, a dor, a desilusão. Esses males do amor que nasce morto são as principais razões que qualquer um tem para não tentar de novo. Não os culpo, nos dias de hoje ninguém realmente precisa de mais estresse emocional.

O que resta a ponderar é a questão: por que continuar procurando a tal costela se tudo pode dar errado e tudo o que pode dar errado muito provavelmente vai dar errado. Enquanto olho para a vida agora, estou plenamente consciente disso tudo. Sei que posso estar enganado, como de fato estive todas as vezes até agora. Não obstante, há algo de diferente sobre a vida vivida e a vida contada, parece que há algo de novo que a experiência vivida na hora em que acontece faz aflorar e que não me deixa desesperar. Eu posso até me condenar por talvez ter duvidado, mas continuo insistindo, por fim, na crença de que há amor e de que as coisas podem, inclusive, dar certo. Munido desse otimismo vacilante, procuro entender como pessoas tão diferentes podem acabar unidas pelas circunstâncias e quem sabe encontrar uma na outra o que estiveram procurando. Descubro que não há nenhum bom motivo para isso, mas que o fato de estarem juntos é a única e suficiente prova de que o amor, esse amor sim realista, ciente de sua posição frágil num mundo que tenta os amantes a todo o instante, ou que os encoraja a desistir pode ter de fato acontecido.

Posso dizer que, salvo engano, estou reintegrado na posse de minha costela perdida. O que espero é pouco e ao mesmo tempo muito, jamais voltar a perde-la. Se o amor é um sentimento, basta que se sinta para que ele exista. Se o que sentimos é amor, basta que o tempo prove. O que o futuro reserva eu não sei, mas vou apostar no amor.

sexta-feira, maio 20, 2005

Despedida

Tenho a meu lado, no leito,
a morte, que me vigia.
Pois de tanto amar a vida,
por ela fui desprezado;
e tenho a morte ao meu lado
a despeito da porfia
de fugir ao meu destino
de ser por ela encontrado.
A morte já me sabia
a morte já me esperava.

Se a vida foi vazia,
se o sentido foi disperso,
se só deixei o meu verso
testemunha da passagem
pela vida que me enjeita,
já não cabe discutir.

Não importa que a viagem
seja feita de repente,
a minha filosofia
é morrer serenamente,
sem ninguém me ver partir.

Estou certo desse tanto:
de que ao longo dessa sina
de ter vivido e morrido
(sina de todo rebento
desde cada nascimento)
eu amei, chorei um dia,
e creio que fui amado
ao menos por um momento.

Então vou sem sofrimento,
sem pesares me disperso.
Minha despedida em verso
é fruto de uma ironia:
que tanto amasse a poesia
e só prosa me aprouvesse
na minha biografia.

segunda-feira, maio 02, 2005

Amar

Amar é um exercício de paciência. Nada tem a ver com a busca incessante do prazer e da satisfação do desejo. A satisfação do desejo nada tem de perene, pois este muda mais rápido que as estações. O desejo é egoísta e individualista. O amor se dá, antes de mais nada, em relação ao outro.

Enquanto na paixão, e para isso basta verificar o significado da própria palavra, sofremos a ação do desejo pelo outro, o ato de amar é uma atuação positiva da vontade direcionada para o outro. O objeto de desejo é mero objeto. É um meio pelo qual nosso desejo atua à nossa revelia e nos lança por impulso a fim de satisfazer-se, sendo a satisfação o fim último do desejo, e a natureza do desejo não se satisfazer. O ser amado é fim do amor. O amor tende para o ser amado e nele repousa, tendo chegado ao seu lugar natural, no qual permanecerá enquanto resistir as perturbações irreverentes da paixão.

Amar é querer o ser amado como é. Sem tentar adapta-lo aos desígnios dos próprios caprichos. O ser amado não é o espelho das nossas preferências, antes é o próprio padrão pelo qual medimos o que de mais nobres devemos aspirar. A pessoa a quem queremos pertencer. É por isso que muitas pessoas, ao ver mudar o que tanto amavam em relação ao parceiro, ficam desapontados; afinal, quando, desavisados, mudamos algo essencial em nosso ser, podemos estar pisando numa das inúmeras coisas que serviam para sustentar aquele amor feito tanto das qualidades quanto dos defeitos que todos carregamos.

O amor reside nas pequenas coisas. A contemplação do ser amado nos dá a perspectiva extraordinária do infinitamente pequeno. As milhares de idiossincrasias que não conseguimos perceber em nós mesmos são as características mais marcantes que nos dão a certeza de estar na presença do ser amado. As coisas mais irritantes podem às vezes ser aquelas das quais mais sentiríamos, como muitas vezes sentimos, falta. São as coisas que amamos odiar.

O amor reside no perdão. Porque o perdão é a antítese do orgulho que nos isola do ser amado, nos torna uma ilha que, conquanto não sinta dor, não ama. O perdão nos permite enxergar além da dor, ao invés de esquece-la e viver para sempre com uma ponta de mágoa. O orgulho pode ser pisado, mas nem sempre precisamos nos apoiar nele se tivermos esperança o bastante para nos reerguer a partir dos cacos do orgulho e pela dor superada tornarmo-nos dignos.

Amar é ter esperança. Esperança é a certeza do advento do incerto, é a contradição que nos ergue quando tudo mais nos abandona, até mesmo o nosso amor. A esperança não morre porque para que morra, é necessário que morramos; se tivermos esperança vivemos, se não tivermos, vá estávamos mortos. Esperamos o melhor, esperamos que nosso amor seja correspondido da mesma forma perene e profunda que o entregamos.

Entregamos o amor perene e profundamente porque amar é como descobrir em nós um rio subterrâneo que jazia insuspeito metros abaixo das camadas de cinismo, desilusão e desejo que maculam a capacidade de cada alma de realizar sua própria essência.

Amar é uma prática temerária, pois envolve a entrega total a um reino onde a incerteza impera. O medo que nos preserva deve ser abandonado, a dúvida deve ser calada, o orgulho sufocado e as lágrimas, ora, estas devem ser nossas companheiras mais presentes e abundantes, porque amar é também chorar. Seja de alegria, seja de tristeza.

Amar é ser infeliz. Ser infeliz é a única coisa que podemos esperar, e não há melhor maneira de sê-lo do que amar. A dor é companheira constante do amante e sem ela, só resta a ilusão. Algumas pessoas, no entanto, afortunadas almas cujo tempo de esperar com dor no torvelinho de suas contradições interiores tenha passado enfim, são capazes de encontrar algo além da sina que nos cabe a todos. Descobrem o que ninguém pode ensinar e conseguem amar em paz.

O amor em paz é silêncio. Maravilhoso, aveludado silêncio.

domingo, maio 01, 2005

Vigília

Os dias mais negros da vida são sempre precedidos por momentos de alegria e despreocupação. É daí que vem a recomendação bíblica: sede sóbreos e vigiai. O estado de vigília é condição para sobreviver, seja no mundo dos vivos, da luz e do dia, seja no mundo sutil no qual a alma habita lado a lado com os mistérios.

Hoje o mundo dá suas voltas conectado por cabos, circundado por satélites, iluminado, ponta a ponta, pelo conhecimento humano e pelas obras homens. Nossas mãos dão nova forma a variados cantos da terra, e cada vez mais, enquanto nos fascinamos com as obras de nossas mãos, enquanto cada vez mais aspiramos tomar o trono de Deus e anunciamos sua morte ou negamos que sequer tenha tido existência, deixamos para trás a beleza e a importância dos mundos sutis. O nosso tempo padece e os problemas que se tenta combater não passam de sintomas. O espírito humano é que está doente, cego pelo poder das mãos, obscurecido pela técnica e em busca de absolvição fácil por seus vícios mais profundos.

Talvez o sinal mais claro de que estamos lançados nas mãos do determinismo sinistro da escravidão pelo desejo seja o extremo relativismo moral, religioso, ético e filosófico reinante. Não é possível dizer em voz alta que existe um bem e um mal, um certo e um errado, um justo e um injusto, a despeito das opiniões humanas que só fazem mudar sem ser chamado de fundamentalista, ou de intolerante.

Posso estar enganado, mas costumava-se ter aspirações mais altas do que a mera vontade de ser tolerante e políticamente correto. Os princípios perenes são ridicularizados por nossa geração corrupta para que possamos conviver com nossa própria corrupção. É um processo de aniquilação da consciência.

Essa corrupção é uma doença espiritual. E nesse tempo em que a doença é mais grave, tanto mais os sintomas dos quais o mundo padece são diagnosticados a partir da negação do espírito que é deixado para sofrer ainda mais. Esquecemos do tempo em que podíamos transitar por entre nossas consciências perguntando o que era certo e tínhamos a liberdade de fazer o errado. Hoje em dia não há pecado, tudo o que você tiver vontade de fazer é certo. E depois todos se espantam com a fragilidade dos sistemas de argumentação moral e com as barbaridades cometidas sem motivo aparente.

Esse mundo precisa de Deus desesperadamente e só faz negá-lo. O homem precisa salvar a sua alma para só então encontrar paz e graça. A alternativa é ser escravo do desejo, é negar a própria liberdade sem nem ao menos admitir que há escolha. Não vigiamos mais. Agimos como se não houvesse amanhã, nem juízo. Que Deus tenha piedade de nós.

quarta-feira, abril 27, 2005

Namorando

Meu mais profundo pesar acabou. Eu passei um bom tempo me lamentando da solidão, fazendo poemas em homenagem à tristeza, chutando lata na rua, cantando canções de desamor. Enfim tenho uma namorada.

Não, este não é um post do tipo querido diário, mesmo porque, uma vez que sei de de vez em quando meu blog é lido por amigos fiéis, perdi o direito de escrever as coisas chatas da minha vida comum e por outro lado os mesmos amigos leitores provavelmente já sabem o que aconteceu.

O interessante é a maneira como essa circunstância afetou minha percepção daqs coisas. Em primeiro lugar, afetou minha percepção dos casaizinhos. Eu sempre odiei casaizinhos. Gente que anda sorrindo, de mão dada, suspirando e olhando um para a cara do outro, para mim, pode ser qualquer coisa menos normal. Hoje me vejo parado feito um poste olhando por dez minutos para a cara da minha supra mencionada namorada enquanto ela come um hamburguer e toma guaraná. Embora não tenha mudado de opinião a respeito da minha própria atitude, não só ela parece inevitável como também natural.

Em segundo lugar, a vida de solteiro. A vida de solteiro era meu castelo, meu forte livre da ingerência de qualquer coisa que fosse diversa da minha vontade em seu estado mais puro, a liberdade individual de ficar com quem fosse e fazer o que fosse tão logo viesse a oportunidade (o que normalmente se traduzia em encher a cara e torcer para não ter do que me arrepender no dia seguinte). Jamais pensei que me fosse encontrar na posição de precisar resistir a um impulso por qualquer razão que não meu senso de boas maneiras; agora, aparentemente, desenvolvi uma consciência. Para aqueles de vocês que ainda não descobriram, consciência é aquela coisa pentelha que obriga o indivíduo a fazer o que é certo, sem relativismo (pois o relativismo é somente uma forma de auto engano) sob pena de te deixar com um baita sentimento de culpa.

O terceiro ponto é que vejo me tornar um daqueles cretinos que começa a "fazer" casaizinhos em todo o lugar, montando na cabeça quem combina com quem e discutindo as conclusões com minha cara metade. É fato notório que os animais da espécie casalzinho, tão logo se apercebam de sua condição como tais, começam a tentar reproduzir nos outros os efeitos de sua condição, engrossar suas fileiras e perpetuar todas as idiossincrasias que aos poucos se desenvolvem, especificam e se apoderam dos enamorados. Então fico eu pensando em como melhor juntar aquele amiogo e aquela amiga, nutrindo a idéia de que estou prestando algum serviço aos dois. Não me ocorre nesses momentos que dois maiores de idade responsáveis e dotados de intelecto, polegares opositores e faculdade de comunicação possam prescindir de minha ajuda para encontrar alguém que melhor lhes sirva.

Sem prejuízo de posteriores retificações que só me serão permitidas conforme aumente minha experiência no assunto, decidi ser no melhor interesse de minha sanidade e quiçá no da sanidade de outros fazer um exame crítico de minha condição particular em seu caráter geral para fins de registro.

Num apólogo final, convém lembrar que sou um romântico posando de cético. Por pior que possa vir a ser, um relacionamento é algo não só salutar como necesário para a maioria das pessoas. Há quem diga que é o melhor jeito de passar o resto da vida. Pensando em retrospecto, é certamente melhor do que estar sozinho, e embora eu venha aqui zombar do meu próprio contentamento, estou contente assim mesmo. As razões que me levam a experimentar esse delicioso torpor mental serão expostas em breve, mesmo porque, se minha namorada ler isso, o que é bem provável, pode vir a querer satisfações a respeito.

sábado, março 26, 2005

Perguntas estúpidas

Então eis que estou aqui de novo, desta feita assistindo South Park, quando o professor das crianças, Mr. Garryson, solta a brilhante frase: "Não existem perguntas estúpidas, só pessoas estúpidas”, ao responder ao que era, obviamente, uma pergunta estúpida.

Estava pensando sobre a maneira como as escolas nos preparam para assistir às aulas. Somos encorajados a fazer qualquer tipo de pergunta, a não sair da sala com dúvidas, a perguntar seja lá o que for, e isso me deixava intrigado. O que é que leva as pessoas a abusarem tão descaradamente dessa prerrogativa do aluno moderno e soltar a todo o tempo as mais variadas perguntas imbecis?

Eu posso falar com segurança somente sobre mim, e devo dizer que faço poucas perguntas. Se o assunto não me interessa, é muito provável que eu não faça pergunta nenhuma e durma perfeitamente tranqüilo sabendo que ficaram pontos obscuros na exposição (inclusive na aula mesmo, se ninguém me perturbar), se não entender alguma coisa que interessa posso perguntar ou ir estudar (e normalmente prefiro estudar por conta), mas existem pessoas que insistem em ficar perguntando ad infinitum, e tem lá suas motivações. Existem aqueles que perguntam por ter uma dúvida legítima, os que perguntam para aparecer, aquelas que perguntam para ser simpáticas, aquelas que perguntam para pegar o professor em erro e aquelas que perguntam porque são endemicamente burras. Entre os que não perguntam nada existem os que não entenderam porcaria nenhuma, os que entenderam tudo e os que estão pouco se lixando para o assunto exposto.

Por tanto, se você está pouco se lixando para o assunto exposto aqui, recomendo que pare de ler e vá tirar uma soneca. É o que eu faria. Quanto ao resto do público, segue a exposição.

É evidente que quem tem uma dúvida legítima tem mais é que perguntar. Se você é suficientemente inteligente e faz uma pergunta, são grandes as chances de que vá fazer uma pergunta inteligente e suscitar algum tipo de comentário ou esclarecimento de proveito geral. O grande problema é que uma enorme parcela da população mundial se considera inteligente mas a maioria destes não o é. Ainda pior, vá lá dizer a uma pessoa que ela não é inteligente para ver a reação do dito cujo. Além de ser uma baita indelicadeza da sua parte (muito embora você possa ter razão), nunca se sabe que tipo de situação vai vir da revelação, normalmente não é boa. É como tentar dizer para alguém que ele ou ela não é bonito ou bonita. É espinhoso chegar ao assunto e o diabo é que às vezes é necessário (quem já teve que dar um fora numa feia, coisa que as mulheres normalmente fazem com naturalidade e nós homens não, sabe bem que a única coisa que não dizemos é que ela é feia por medo de aumentar a desgraça). Mas voltando à trilha, abandonada em prol dessa pequena digressão, vamos observar que pessoas se encontram internamente autorizadas a fazer perguntas estúpidas por se acharem inteligentes quando não o são, e não há praticamente nada que se possa fazer a respeito: ficamos à mercê de diversas perguntas idiotas.

Assim, de uma feita cobrimos os inteligentes e os burros. Vamos agora tratar dos cretinos e dos mal intencionados. Os cretinos, esses desqualificados mentais que pretendem disfarçar sua incapacidade ou conseguir algum tipo de aprovação da figura do “mestre” (por obra de alguma carência emocional ou por força de uma personalidade rasteira) gostam de ficar fazendo perguntas idiotas para que pareça que estão interessados ou que estão acompanhando o raciocínio. Parece-me que tamanha é a insistência para que os estudantes perguntem que os professores começaram a realmente acreditar que qualquer pergunta vale e a valorizar essas dúvidas imbecis que não passam de capachismo colegial. Responder perguntas cuja resposta é óbvia demais incentiva o “puxassaquismo” dos alunos ou então, no mínimo, faz com que os alunos intelectualmente prejudicados acabem por perder preciosas oportunidades de exercitar ao menos um pouco as cabecinhas.

Os mal intencionados são pessoas com uma agenda definida. Eles normalmente tem dois tipos de pretensão: a de saber mais do que o professor ou a de querer ensinar alguma coisa aos colegas. Costumam ser uns tipinhos profundamente chatos, detentores de alguma espécie de verdade da qual precisam convencer uma audiência de ocasião e costumam fazer perguntas de vinte minutos que nem ao menos terminam como perguntas. Eu não tenho nada contra a erudição alheia, mas convenhamos: há um tempo e um lugar; além do mais, me recuso a crer que existam tantos eruditos na faixa dos dezesseis aos vinte e cinco anos. Não é algo factível. Aqueles mais interessados em política são os mais emblemáticos casos de mal intencionados: estou bem próximo da realidade ao afirmar que toda a sala de aula de colégio, cursinho e faculdade de humanas tem um infeliz que para a aula para “presentear” os colegas com uma perspectiva marxista de qualquer assunto que esteja em pauta, seja a Revolução Francesa ou a história da embalagem do creme dental. Fora aqueles imbecis que ficam com o livro na mão esperando para apontar algum erro do professor; esqueceram de avisá-los que os problemas com figuras de autoridade são melhor resolvidos no consultório do psicólogo.

Não sei o que leva um sujeito a perder a mais remota noção de amor ao próximo e realmente acreditar que tem algo a ganhar tentando esfregar na cara de um professor os erros que comete ou desafiando a paciência dos colegas com longas exposições de opiniões alheias por falta de idéias próprias ou de identidade própria, o que dá quase no mesmo. Até o ponto em que isso envolve o professor e o aluno em questão não poderia ser mais indiferente, mas pare para pensar quantas horas de nossas vidas não foram desperdiçadas por causa de sujeitos que de nada vale ter sequer conhecido. Quantas horas preciosas que poderiam ter sido passadas jogando truco, bebendo cerveja, aprendendo a fazer mágicas com uma moeda, fumando um cigarro e tomando um cafezinho, lendo contos curtos de autores contemporâneos ou qualquer outra coisa certamente melhor do que ficar numa cadeira ouvindo uma pergunta cretina e a resposta normalmente demorada correspondente. Aproveite a vida. Ela normalmente acontece do outro lado da porta da sala de aula e qualquer coisa que amplie desnecessariamente o tempo perdido pode e deve ser encarada como ofensa pessoal a todos os outros envolvidos.

O filho pródigo à casa retorna

Eu posso dizer com toda a sinceridade (com uma explicação à moda de Schopenhauer) que não escrevi aqui por um bom tempo pura e simplesmente porque não quis. Sempre me pareceu um grande pecado que muitas pessoas, várias delas bem mais mais inteligentes do que eu, ficaram apaixonadas pelo som da própria voz ao longo do tempo. Isso leva alguém a executar monólogos intermináveis nos quais fazem desfilar sua erudição e sua argúcia dircursiva como quem brande uma espada com a qual corta as trevas da ignorância do pobre ouvinte ocasional ou do transeunte inocente (que não pediram para serem retirados de sua abençoada ignorância). Eu, que não me preocupo em iluminar a ignorância de ninguém e passo a maior parte do tempo refletindo filosoficamente sobre as implicações da interação entre o mundo que me cerca e o meu umbigo, não fiz questão de continuar a escrever quando a atividade não me parecia trazer proveito algum.

Parei de escrever recentemente porque não podia mais suportar as minhas próprias palavras. Estava enjoado do som de minha voz, da disposição das minhas palavras na folha de papel (sim, amigos da geração da internet, eu sou um orgulhoso portador e usuário de folhas de papel e uma caneta tinteiro à qual quero muito bem e, tenho certeza, ela a mim) e decidi que é melhor ficar quieto do que falar apenas por força do hábito (por mais que o hábito tenha surgido de uma necessidade profunda, como já tive oportunidade de observar anteriormente).

Agora que já disse porque parei de escrever, acho que devo explicar porque voltei. O fato é que eu estava um bocado entretido em lamentar minha existência vazia e solitária e agora fico a falar como quem viu passarinho verde. Ora, vi passarinho verde e deixemos o assunto por aí. Importa saber que me animei a vencer a preguiça e toda aquela energia negativa do pessimismo que parecia dar ainda mais força à gravidade que me mantinha cativo e confinado nos limites do sofá e, se não acho ainda que a vida vale tanto a pena, já não acho mais que vale a pena reclamar dela até a exaustão. É o que acontece quando se descobre formas mais agradáveis de ocupar o tempo.

Não é que fosse sem atrativos a boa e velha miséria mas não podia mais ficar incapacitado esperando a vida me dar um chute. Espero poder manter o sentido mais agudo de realidade que o pessimismo sempre me emprestou, por outro lado posso enxergar um pouco melhor o mundo quando não estou preocupado com a tristeza e as lamúrias que aterrorizam até mesmo os melhores de nós escritores diletantes. "E eu que era triste, descrente desse mundo..." Bem, o mundo pode esperar, agora vou dar o troco, a começar pelo próximo escrito. Desejem-me sorte.

P.S. Haverá dias em que minha disposição será mais romântica por força de alguma circunstância encantadora da vida (até mesmo o grande pessimista tem algum momento de alívio em sua caminhada), o que não deixa de ser assustador. Será que terei ainda em mim o necessário para voltar três anos no tempo? Não perca os próximos episódios...

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Feliz Aniversário

Engraçado como imaginei que fosse ficar tão afetado pela mudança do espaço físico no qual a minha vida se desenrola. Agora que mudou continuo muito mais preocupado com a passagem do tempo. É o sentido interno da passagem do tempo que me marca, deprime e limita. Mais um ano veio e, apesar das mudanças externas, só as que vem de dentro me afetam de fato. O meio no qual me insiro não parece me afetar tanto quanto a época na qual vivo. Minha circunstância é temporal. O resto, a despeito do que previa, importa pouco.

O texto abaixo foi escrito no dia 29 de novembro de 2004. Achei que seria melhor publicar antes que perdesse o papel. Lembro-me de tê-lo escrito à sombra de algumas daquelas árvores que ficam na frente do prédio da pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. A pesar de estar bastante tranqüilo no momento não acho que estava muito bem.

Olhando agora para o que escrevi vejo o quanto minhas reivindicações são vazias, vagas e diáfanas. Não tenho nem ao menos noção do que me incomoda, só gosto de ficar inventando um palavreado que me permita dar vazão a esse nada numa esfera relativamente segura. Foi bom ter feito aquele registro porquanto posso olhar para trás e perceber o quanto sou fraco, resmungão e destituído de conteúdo. Seria de se esperar que depois de ler tanto eu pudesse ter me aplicado, mesmo que incidentalmente, a pensar além da minha própria infelicidade oca. Não fui capaz. Não sou capaz. Sou incapaz. Ora, não sei de nada, nunca soube, gostava de pensar que seria melhor crescer, mas na, não é. Eu era um moleque feio, educado, relativamente inteligente para alguém da minha idade. Hoje sou mais um pretenso adulto à deriva no mundo porque não quis se expor à vida. Hoje posso rir de mim mesmo, isso tudo é um bocado patético.

Honestamente espero que minha auto-piedade não me sufoque um dia desses. Hoje acho que quero viver sim, apesar de tudo que possa sobrevir, da insatisfação e da solidão. Mas conto com a esperança de sobreviver, o que é mais do que contava ter algumas semanas atrás. O futuro dirá se tive razão (se bem que nesse caso não importará ter estado errado no final). Mas chega de bobagens, vamos ao ponto.


Feliz aniversário.


Agora é oficial. Acabo de completar vinte e um anos de descontentamento com a minha vida em quase todos os âmbitos. Fora minha vida familiar relativamente livre de conturbações estou na mesma; confuso, a vinte e um anos perturbado pela circunstância de minha vida. Vinte e um anos perdido, sem a menor idéia do que pensar sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre a política, sobre as mulheres, sobre os vícios e sobre as virtudes.

Talvez meu conhecimento possa ser limitado em relação à quase tudo que não seja ligado aos meus próprios vícios. Não falo de beber e fumar, esses são os fáceis. Falo de vícios como a necessidade inescapável de pensar sobre tudo até o ponto da demência, da intolerância em relação à gente burra, da minha polidez hipócrita que me impede de dizer a uma pessoa o quanto ela é burra, de minha solidão auto-imposta por um traço de caráter, da minha vontade de contrariar o que é consenso, da minha incapacidade de me relacionar com uma mulher sem que eu a despreze ou ela me despreze, da minha inconstância no envolvimento com qualquer projeto a longo prazo, da minha aversão pelo trabalho, da maneira empolada e protocolar de falar, que me faz tão chato e tão único.

Acho que com vinte e um anos de convivência já me conheço bem o suficiente. O resto não me é dado saber. Não me lembro de quando me tornei tão pessimista em relação a mim mesmo. Acho que foi na infância, algum tipo de reação ao otimismo com o qual encaravam meu futuro. Nunca quis tanta responsabilidade como cumprir tamanhas expectativas, aliás, sempre quis ser um pouco mais irresponsável. E menos consciente de minhas limitações.

Agora, com vinte e um anos, essa carga de responsabilidade me conclama a superar os meus defeitos, justamente esses defeitos que constituem boa parte do que gosto em mim mesmo (vá lá que seja desse jeito doentio de desgostar gostando). Imagino o que seria de mim sem os meus vícios. Seria terrivelmente insuportável. Quais são meus objetivos imediatos, dado que, no fundo, aspiro a uma das vidas imperfeitas que me são possíveis. Qual delas farei chamar minha?

Outra coisa interessante é que diante desse quadro me vejo atraído por mulheres que compartilham dessas imperfeições, que são imperfeitas do mesmo modo que eu, quiçá dissolutas como eu... E qualquer uma que se importe comigo já não está imperfeita o bastante, não terá vícios suficientes para que juntos os façamos conviver, os meus e os dela. Sinto falta do tempo em que podia aspirar uma mulher ideal, um emprego ideal, uma vida ideal. Havia um propósito específico na minha existência de então. Agora tudo não passa de um impulso cego. Maldita a hora em que eu, ao invés de sonhar, escolhi viver. Sou um vivente imperfeito, não tenho coragem de explorar todas as conseqüências possíveis de minhas escolhas e atos e fico aqui escrevendo sobre a vida. Entre a luz e as sombras preferi a fresca penumbra. Viver assim requer muita habilidade, e requer toda a minha energia aceitar todos os paradoxos que minhas escolhas implicam.

O pior de tudo é que a vinte e um anos fico executando esse exercício inútil de choradeira, escrevo de minha própria estupidez, à procura de alguma redenção que nunca chegue.

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Amores Perdidos

O amor é um jogo repleto de possibilidades, especialmente possibilidades perdidas. Olhar para trás e relembrar as frágeis construções do “que poderia ter sido” é uma disciplina profundamente reveladora do caráter. Aqueles em paz consigo mesmos são capazes de enxergar nas possibilidades perdidas um gentil sussurro de algo que não teria razão de ser, como um raio tímido de sol numa madrugada fria. Aqueles presos ao presente são incapazes de olhar para trás e compreender sequer que fizeram escolhas, deixaram possibilidades para trás, as quais moldaram suas vidas talvez mais do que as escolhas que fizeram. Aqueles presos ao passado ficam acordados à noite, imaginando mil decisões que os teriam feito felizes. Aqueles imersos em solidão contemplam o passado e o futuro indiferentemente, com uma resignação sombria diante de ambos.

Talvez a única coisa mais cortante do que o amor que sentimos seja o amor que perdemos. Quando o amor acontece, nosso senso de proporção é satisfeito: o homem é para a mulher e ela para ele. Quando se perde o amor, aquele pesar conformado que nos aflige, o suspiro profundo, a tristeza que nos abate, a dor que chora conosco, deixam tudo mais bonito. A beleza desse instante único em que percebemos a oportunidade perdida, o átimo de tempo em que em que o amor nos foge das mãos, é o que há de mais sublime e belo no tempo do coração. No fim, o que nos resta é o consolo de que onde morre o amor, nasce a beleza. Os corações sacrificados, os amores perdidos, as lágrimas contadas: a eles brindamos e bebemos ao chegar a noite.

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

The angel of death watches over me.
She has a face, and a name,
and a voice.

The angel of death is a dancer,
and a graceful one.
So I follow her steps
as she calls.

I hear my name
and I feel no more,
and I see no more,
and I am no more.

I sacrifice my last, desperate breath
to call your name,
but you are away, in other arms
I love no more.

Meu peito era tristeza...

Meu peito era tristeza vaga,
dor indefinível,
solidão vadia.

Por te conhecer, meu bem
meu mal ganhou um nome,
um par de olhos claros,
um sorriso cálido,
um corpo de mulher.

Você queima e não mata,
fere mas não sangro;
me dá de beber, no corpo,
o fel que todo dia espero.

Por você me derramo,
em libação calada
de amor indigno.

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Amigos, non poss'eu negar

Depois desta bobagem toda me senti mal e resolvi recorrer a palavras alheias que caem como uma luva para meus momentos mais românticos. Eu posso me servir do testemunho de diversas pessoas próximas que dirão o quanto sou passível de uma sujeição semelhante a este eu lírico cujas palavras faço minhas, e pelas mesmas razões em boa parte das vezes. Vai entender...

Amigos, non poss'eu negar

Amigos, non poss' eu negar
a gran coita que d'amor ei,
ca me vejo sandeu andar,
e con sandeçe o direi:
os olhos verdes que eu vi
me fazen or' andar assi.

Pero quemquer s'entenderá
aquestes olhos quaes son,
e dest' alguen se queixaráhe
mais eu ja quer moira, quer no
os olhos verdes que eu vi
me fazen or' andar assi.

Megalomania

Quando eu crescer eu quero ser um gênio incompreendido. Imagine só poder alçar minha voz contra a sabedoria mundana e revelar a todos os imbecis aquilo que todos num futuro póstumo saberão ser, obviamente a verdade absoluta.

Quero provar que todas as teorias que contradigam os meus sábios aforismos são falsidades sacrílegas e disparatadas. Minhas palavras serão buscadas e há de se inventar ainda um método científico mas impreciso para a hermenêutica de minhas geniais idéias.

Milhares de crianças ao redor do mundo irão aprender a repetir minhas mais famosas pérolas de sabedoria, afinal serão minhas idéias a moldar as mentes do próximo século como jamais antes idéias foram capazes de influenciar jovens mentes.

Evidente que poucos me darão crédito. Pelo contrário, me chamarão de megalômano, de louco, de idiota, mas eu terei minha vingança, pois não se pode querer cobrir a luz da verdade com a peneira da inveja e da baixa mentira.

Aqueles que pensarem que se livrarão facilmente da abrangência de minha genialidade serão os primeiros a se dobrar ante a minha suprema capacidade intelectual e o poder transformador de minhas idéias. Estes se arrependerão de ter alçado suas rasteiras vozes contra mim um dia e vão perceber que foram libertados das amarras do obscurantismo pelas minhas palavras geniais.

Assim concluo esse prognóstico otimista do futuro próximo conclamando a todos que o lerem para que se curvem desde já à minha evidente superioridade em relação ao bolo amorfo da humanidade.

Sou humilde a ponto de reconhecer que alguns poderão até vir a compreender hoje o que digo, mas só os verdadeiros escolhidos serão capazes de tamanho feito.

P.S. Estou bêbado, então desculpem se a piada foi sem graça. Achei um exercício fascinante de cretinice. Obrigado e boa noite.

terça-feira, janeiro 11, 2005

O primeiro encontro

O primeiro encontro é aquele que tudo define. No primeiro encontro reside todo o futuro possível de um relacionamento que poderia ter um grande impacto no mundo, uma vez que você e a mulher a ser encontrada podem se dar bem, marcar mais encontros, iniciar um relacionamento, fazer apresentações aos pais, morar juntos, casar, ter um filho que crescerá para se tornar um grande gênio da medicina e descobrir a cura para o câncer. Ou você pode simplesmente meter os pés pelas mãos e teremos que conviver com este ou qualquer outro flagelo da humanidade por outros tantos anos. Tudo é uma questão de possibilidades, e estas são infinitas, mas na pior das hipóteses o futuro depende desse momento e você tem uma grande chance de acabar com ele.

Ao contrário do que normalmente acontece em algumas culturas, aqui nesta nação tupiniquim a partir da qual vos falo, o primeiro encontro é um momento completamente independente do que popularmente se convencionou chamar de a primeira “ficada”. Ficar com alguém, ou melhor dizendo, beijar e acariciar (mais ou menos livremente dependendo da pessoa e da situação) alguém sem compromisso algum, por mera obra das circunstâncias, é algo relativamente fácil. Você conhece a história: festa na quinta feira à noite, você vai de carona e por isso acha mais educado tomar um banho antes, coloca uma roupa que melhor esconda seus defeitos antes que todos estejam muito cegos ou muito bêbados para se importar, ouve a buzina na porta e vai para mais uma noite de álcool e rejeição por parte de alguém que, em condições normais, jamais mereceria sequer um olhar seu (e que no decorrer da noite ficou substancialmente mais bonita).De repente, sem ter se dado conta, você se encontra ao lado de uma total desconhecida que parece estar, segundo opinião dos expertos mais conceituados, conectada à sua boca de maneira indisfarçável, enquanto você, que também é filho de Deus, explora o quanto pode da anatomia da estranha em questão com a sua mão livre (existe um mão que invariavelmente fica presa nessas ocasiões). Ora, a primeira ficada tem grande probabilidade de ser, diante das circunstâncias, aquilo que chamo de, para fins de trazer a idéia à tona com toda a clareza que sua realidade merece, uma cagada monumental.

Muito bem, dispostas as peças desse modo, logo fica evidente que existe uma grande chance de que, dado que você tenha conseguido chegar incólume em sua casa apesar da bebedeira, tenha pegado o telefone da mulher com quem ficou e se recorde vagamente de quem ela era, acabe sofrendo uma grande decepção (à qual alguns intitulam também ressaca moral). Logo, a antecipação se acumula, como no princípio do terceiro movimento do primeiro Concerto para piano de Tchaikovsky (em mi bemol, se não me falha a memória), sem que no entanto se saiba se o finale será tão espetacular como no concerto. Pode ser que ao invés de aplausos, ao fim do encontro, venham as vaias.

Duas formas básicas de decepção podem ocorrer. Você pode ficar despontado com ela ou ela ficar despontada com você. Ou ambos podem ficar desapontado, não há terceiro excluído. Diante de tudo isso que pode dar errado, diante do horror de se ver num encontro com uma mulher esteticamente prejudicada, você pega o telefone e marca a data e o local. A atitude de desafiar o destino quando todas as probabilidades estão contra você lhe dá a estatura de um herói grego de tragédia. O ar grave que está por trás da conversa aparentemente leve e despreocupada denota a tensão que permanece pairando sobre as cabeças envolvidas durante toda a duração do encontro. Esse é um dado com o qual se deve contar no cálculo do risco envolvido na difícil atividade de procurar relacionamentos de que tipo forem, a tensão está sempre lá.

Chegado o momento de chegar ao encontro em si, cercado, provavelmente por todas as circunstâncias já descritas, fica difícil saber como cumprimentar. Selinho? Beijinho no rosto? Aperto de mão? Seria bobagem imaginar que os detalhes são irrelevantes. Numa situação com tanta pressão acumulada, qualquer rachadura, qualquer vazamento, qualquer falha de engenharia no encontro pode ser fatal. E quem sabe se detalhes para os quais você jamais atentaria não podem ocasionar as mais variadas más impressões: se seus sapatos combinam com as meias, se você passou em cima das tulipas do jardim ao estacionar o carro, se você tem um chaveirinho de coelhinho, brinde de aniversário da revista Playboy, pendendo para fora do bolso e outras coisas do gênero. As mulheres são expertas em reparar nas bobagens mais inacreditavelmente desprovidas de importância (para você).

Esse pequeno demonstrativo não é nada comparado com o que vem depois. Analise suas conversas mais recentes com os amigos, com as mulheres, com as pessoas à sua volta. Você realmente confia na própria boca? Quer dizer, quantas gafes você já deu, quantos palavrões inomináveis, quantas piadas machistas, comentários ofensivos, infrações contra o politicamente correto, enfim, quanta porcaria já brotou, num glorioso ato involuntário de diarréia verbal, da sua boca? Por que é que isso não vai acontecer justamente no momento em que você precisa estar mais apresentável e mostrar seu melhor lado, a saber, no primeiro encontro?

O que me proponho a fazer aqui não é desestimular ninguém, senão advertir que, como em tudo na vida, muita coisa pode dar errado no primeiro encontro. Isso é muito útil para quem se encontra em vias de empreender tamanho feito, uma vez que acaba em grande parte com a expectativa de que algo possa efetivamente dar certo, de modo que se pode desfrutar o encontro sem risco de ser pego desprevenido pelo fracasso. Se isso não é um serviço de utilidade pública eu não sei o que é. Então aproveite ao máximo seu encontro, afinal as chances são de que existam muitos outros primeiros ainda por vir em sua carreira de Casanova às avessas.

terça-feira, janeiro 04, 2005

Sim, eu sou fã de Star Wars...


:: how jedi are you? ::

Verão 2004/2005...

Estive na praia por uma semana com uma gente muito agradável e divertida. Voltei bronzeado e um bocado contente. Talvez não tenha sido tudo rosas, mas esta é a impressão geral. Ao invés de ficar tentando rememorar o que aconteceu e escrever um breve diário de viagem, achei por bem publicar algumas notas que tomei em diversos momentos daquela semana, conforme me dava vontade e tinha a pena à mão. Essas poucas notas são um testemunho muito mais honesto e preciso de minhas impressões do que qualquer narrativa a posteriori jamais poderia ser.


Música das Ondas

Ainda que não seja a primeira vez que faço notas da praia, é a primeira vez que tenho a audácia, tendo em vista a probabilidade de receber críticas diversas, de escrever na praia. O barulho das ondas embala o ritmo da pena, a escrita sai vagarosa e rítmica.

Nada mais natural. As ondas também respeitam esse ritmo determinado por algum mistério que não ousaria sondar, elas o imprimem, por sua vez, ao caminhar sinuoso e macio das mulheres que passam. Tudo que vejo na praia parece compor um sistema harmônico cujo propósito principal é deleitar os meus sentidos.

Seria lugar comum dizer que o litoral brasileiro transpira sensualidade. Evitaria essa repetição se pudesse, mas não consigo evitar o comentário diante da topografia feminina que se desvela diante dos meus olhos.

Sabe-se lá por que motivo me ponho a prosear dessa maneira. Não arrisco palpite mais ousado do que o de que fui inspirado por toda a romântica atmosfera que me cerca, aliada à alegria do sol que achou enfim por bem fazer uma visita. Em momentos assim poderia facilmente me deixar encantar pela música do vento e me perder no mar.

Cambury, 30.12.04



É dolorosa a contradição de desprezar aquilo que desejamos. É uma necessidade que temos para aplacar a condição grave e avassaladora de ser que deseja, e que o faz desmesuradamente.
Por pior que possa ser, tudo isso desaparece ante à sensação de vazio, solidão e egoísmo de ver o desejo realizado. É por isso que só os santos são felizes.

Cambury, 30.12.04



Soneto sombrio

Os vis fantasmas das memórias mortas
nada fazem senão triste figura
por ter rompido os laços de ternura
com os vivos, fecharam-lhes as portas

E as trilhas escuras, sendas tortas
desprovidas de amor ou de candura
são percorridas pela luz escura
destas memórias sôfregas e rotas

Sua existência efêmera e negada
pelo implacável mal do esquecimento
a sua morte nunca anunciada

sem aflição, sem dor, sem sofrimento
são a extensão do quanto lhes invejo
melhores que esta dor que sinto e vejo.

Boiçucanga, 29.12.04


Observações impertinentes: Carol e Eduardo, obrigado pela leitura dos originais, vocês foram muito gentis. Agradecimento ainda a Carol e Cecília por me inspirarem a escrever o primeiro texto, meramente por estarem lá. O caput tem a mesma data do post.