terça-feira, dezembro 26, 2006

Sobre viver e escrever

Sempre achei que a vida nos inspirasse a escrever. Agora fico pensando se não é o contrário. Se o escritor procura expressar algum tipo de verdade (imagino que deva ser este o seu papel, caso contrário seu trabalho é mero passa tempo inútil) a vida deveria ser o substrato mais rico do qual poderia destilar as idéias.



As premências da vida mesma, no entanto, obrigam o escritor, o qual não é nunca puro expectador, nem puro criador ex nihilo, devendo antes tirar de si ao menos aquilo que imagina. O papel ativo na vida, a interação com o que acontece ao seu redor, é atividade que, no entanto, parece mais atrapalhar do que ajudar. As procupações mundanas fazem muito por nos retirar daquela postura, ainda que imperfeita, de observador.



A mim parece bastante ingrata a tarefa de observar os homens e ao mesmo tempo ser um deles. Qualquer coisa de ruim que disser a respeito de alguém, ou da humanidade em geral, vai carregar alguma medida de hipocrisia. Não bastasse isso, ainda nos batemos com preocupações cotidianas que nos impedem de refletir o suficiente e se dão algum sentido da realidade é para nos afastar da tarefa de narrá-la.



Contudo o mundo apresenta coisas bem mais interessantes do que nossos problemas mesquinhos. Existem dramas, tragédias e farsas acontecendo nesse exato instante. Espero poder encontrar em mim capacidade de coletar alguma coisa e dar a forma escrita no melhor de minha habilidade. Por enquanto convém a ocupação com coisas menos elevadas. Pena. A tensão entre a vida olhando do alto e a vida entre os homens (a qual nunca recebeu de mim muito valor) é algo trágica e algo cômica.





powered by performancing firefox

quarta-feira, dezembro 13, 2006

O Islã e o Ocidente

Ótimo o artigo de Bruce Thornton, lembrando algumas coisas importantes sobre as relações entre o Islã e o ocidente. Já passou da hora de percebermos o perigo representado pela postura acanhada do ocidente em relação aos radicais muçulmanos. Abaixo o politicamente correto, a questão é mais séria de que a possível ofensa a um grupo, é um embate pela sobrevivência de nossa civilização. Eis o link:



http://www.victorhanson.com/articles/thornton120706.html



"Blood was always on our hands: we were licensed to it. Wounding and killing seemed ephemeral pains, so very brief and sore was life with us... We lived for the day and died for it."



T.E. Lawrence - The Seven Pillars of Wisdom.





powered by performancing firefox

sexta-feira, novembro 10, 2006

Politicagens

É bastante natural que passada a empolgação das eleições sigamos nossas vidas mais ou menos como de antes. Sem mudanças qualitativas na vida política brasileira, permanecendo Lula enrolado ciumentamente em sua faixa presidencial, é importante entender por que haverá mudanças sim, mas de natureza diferente.

As mudanças que se poderá esperar no segundo mandato que, na prática, já começou são quantitativas. Os graves crimes que se vem cometendo, os abusos contra a imprensa, o empobrecimento da maioria dos setores sociais do país, as negociações nefandas (nefandas é termo que emprego no sentido mais preciso: coisas que não podem sequer ser ditas, o que, diante da mordaça que se pretende impor à imprensa, não deixa de ser irônico) com outros "líderes" da américa latina, e a arrogância de quem foi confirmado em toda a sua esplendorosa corrupção, podridão, seu ridículo, por aclamação popular, democraticamente, por um povo que vê em sua situação algo a aspirar.

Santo Agostinho pergunta, "quando um povo for de costumes moderados e dignos, guardião diligente da utilidade pública, a ponto de cada um preferir o bem comum ao seu interesse particular, não seria justo para dito povo poder promulgar uma lei que lhe permitisse nomear para si magistrados encarregados de administrar seus negócios, isto é, os negócios públicos?"

O Doutor da Igreja continua: "Contudo, no caso de esse mesmo povo ir caindo aos poucos, depravando-se, e caso ponha o seu interesse particular acima do interesse público, e vier a vender o seu sufrágio livre, por dinheiro? Além do mais, corrompidos por aqueles que que ambicionam as honras, confiar o governo a homens malvados e criminosos, não seria justo - caso ainda se encontrasse um só homem de bem, revestido de influência excepcional - que esse homem tirasse do povo a faculdade de poder distribuir as honras, para depositar a decisão nas mãos de alguns poucos cidadãos honestos ou mesmo de um só que fosse?"

Agostinho conclui que, conforme sejam as circunstâncias, as leis temporais podem ser mudadas sem que com isso se cometa injustiça. A democracia não é mais justa que a ditadura, se os grupos "democráticos" se valem de recursos ilícitos para dobrar a vontade do povo de modo que lhes entreguem voluntariamente o poder, contrariando o interesse da nação, de nada vale dizer-se democrático. Se a imprensa está controlada de tal forma a defender um único movimento político, como acontece com a esquerda brasileira, se os pobres se vendem por uma bolsa família enquanto os ricos se vendem por lucros de juros altos, como os banqueiros, ou em troca de um mensalão, como nossos deputados, a democracia, nesse caso, não é em nada melhor do que a ditadura.

A solução autoritária seria a "salvação" do povo. Não creio. Se a doença está no povo mesmo, se são os brasileiros que vendem sua devoção em troca de lisonjas, se vivemos imersos em uma grande alucinação e mandamos nas urnas a mansagem de que a equerda pode cometer qualquer crime e receberá aplausos em retorno, atraímos sobre nós a sorte que recebemos - a saber: a miséria, o desemprego, o cinismo presidencial - e a indignação que muitos fingem e exibem diante de todos não corresponde a um sentimento real de arrependimento por ter apoiado este governo, de nada vale esperar a solução Deus ex machina, os bons aqui não tem tido qualquer chance.

Nosso povo é o povo do Coriolanus de Shakespeare, com as exceções que conhecemos. Um povo que é levado por belos discursos, que só se sente bem quando está descontente mas não age a fim de sanar os males, sua indignação é superficial e vazia, sua vontade é corrupta. Ou, citando Lawrence da Arábia (o filme): "A little people, a silly people, greedy, barbarous and cruel."


powered by performancing firefox

segunda-feira, agosto 28, 2006

O Amor das Pequenas Coisas


Às vezes acho que me esqueci do amor. Tanto tempo já faz que não me sinto contundido por sua pungência que é certamente lícito pensar que o esqueci. Isto não poderia estar mais longe da verdade. O afeto sincero, os olhares de cumplicidade, os sorrisos sem maior razão do que o simples fato de ter ao lado o ser amado, dão testemunho da minha profissão, de que mantive a promessa de acreditar que alguma felicidade me aguarda entre o bem querer e o ser querido.

Percebo que falo menos sobre o sentimento, e entendo, no entanto, que parei de teorizar sobre aquilo que a prática aperfeiçoou e fez manifesto em cada gesto de ternura do qual não me embriago desesperado, mas antes recebo de coração aberto.

Pareço menos inspirado, mas a inspiração é uma qualidade injustamente distribuída, enquanto o amor se dá a quem quiser recebê-lo. Posso entrever a paz que repousa após o ato de procurar amorosamente a mulher que se quer bem e entender que ali está um porto seguro em meio a tantas dúvidas que estão tão em moda entre os intelectuais. Os sentimentos simples são mais aptos à vocação de quem procura a verdade, e não a dúvida, e a pretensa erudição não vale um olhar sequer da mulher que se ama.

Já não é preciso tantas linhas para falar. Há certas coisas que se mostra cada dia, com prazer imenso, e talvez seja preciso diminuí-las para dizê-las. No mais, já existem palavras demais causando antes confusão do que concórdia. Que o amor não seja maculado por palavras demais, nem medo demais. Que brilhe ainda mais um pouco nas pequenas coisas, como um segredo contado a quem consiga parar e escutar com o mesmo cuidado necessário para amar alguém.



 

quarta-feira, agosto 02, 2006

Citação provocativa.

"Os marxistas inteligentes são patifes. Os marxistas honestos são burros. E os inteligentes honestos nunca são marxistas."
(J.O. Meira Penna)

sexta-feira, julho 28, 2006

A Excomunhão de Espinosa

Recebi um gentil e-mail de Brunilda, a qual me conclamava a continuar a postar alguns escritos neste espaço. Passada a natural lisonja que sente um escrevinhador amador nesses momentos, pus-me a escrever. Embora tenha composto o texto no dia em que recebi o e-mail, acabei achando-o incompleto e deixei o pobre engavetado. Muitos afazeres acadêmicaos acabaram por me desviar a atenção, não só do blog como de minha vida social, durante mais ou menos um mês, de sorte que só agora acheio ocasião para trazer à luz o bebê que jazia em minha pasta de originais. Meu agradecimentos a Brunilda e meu pedido de desculpas pela indelicadeza de escrever e não publicar. Dado que não respondi seu e-mail espero ompensar fazendo público o meu obrigado.

A excomunhão de Espinosa e a liberdade fundamental.

Pareceu-me estranho, ao ler Francis Schaeffer, que o grande teólogo fizesse certas críticas à modernidade, em especial no campo da filosofia, enquanto elogiava o pensamento da reforma em muitas frentes e deixasse de lado a doutrina de Baruch de Espinosa. O judeu apóstata que transitava em meio a protestantes calvinistas e judeus refugiados na Holanda lançou as bases do pensamento “do desespero”, para usar a terminologia de Schaeffer, muito antes de Hegel e Kierkgaard. Se não influenciou diretamente o pensamento moderno (falo em modernidade no sentido dado por Schaeffer), certamente foi lido por filósofos de grande renome, os quais levaram a termo pensamentos semelhantes sobre Deus e sobre o homem, com as piores conclusões.

Por que o trabalho de Espinosa foi proibido na Holanda? O que explica o fato de os reformadores holandeses tão afeitos à liberdade e contrários à repressão demonstrarem tamanho horror ao pensamento do filósofo? Espinosa foi, também, excomungado pelos judeus de sua comunidade e é preciso entender a razão disso a fim de não cair no velho truque de apelar para a intolerância religiosa como explicação geral para os males do mundo (e não falta nunca quem esteja disposto a fazê-lo).

Em primeiro lugar, a fim de preparar o que segue, devo dizer que admiro bastante a filosofia de Espinosa. Muito embora discorde plenamente de suas teses centrais, como discordo das de Schopenhauer – o qual, aliás, foi seu leitor – por razões semelhantes, ele foi incrivelmente perspicaz em relação aos homens. Sua cosmovisão, incapaz de prover uma base suficiente para explicar o mundo apropriadamente, é amplamente superada pelo olhar do filósofo em relação ao homem, na medida em que consegue perceber a natureza humana e dar conta de grande parte dela de maneira sistemática e detalhista no terceiro livro da Ética e em outros lugares na sua obra. Apesar de perceber as profundas vicissitudes do homem, Espinosa não se inclui entre os filósofos do desespero diretamente porque nunca deixou de ser movido por um otimismo humanista na “evolução” do homem (o termo é anacrônico, mas ajuda) através do conhecimento da natureza.

O primeiro livro da Ética fala de Deus. Deus é a causa de si mesmo, desdobrando-se articuladamente em modos e atributos que são compõe o mundo em suas subseqüentes especificações. É o que se costuma chamar Deus sive natura. Este é o primeiro problema do pensamento de Espinosa, e vai viciar os seus posteriores desenvolvimentos em grande medida. Se Deus é idêntico ao mundo, se somos modos da substância infinita, um problema lógico se apresenta: dizer que tudo é Deus é o mesmo que dizer que nada é Deus.

O Tratado Teológico Político analisa a Escritura Sagrada conforme esta premissa de que Deus e a natureza ou o mundo são a mesma coisa. Desse modo, a Bíblia é interpretada conforme os padrões da filosofia natural. Tudo o que, no texto, contradiz as leis científicas é tido como metáfora, e a profecia é interpretada como resultado da imaginação dos profetas. Esse pensamento é exatamente o mesmo do liberalismo teológico de nossos tempos e da busca pelo Jesus histórico. Como dizia Schaeffer, é impossível separar o aspecto sobrenatural da narrativa bíblica sob pena de perder de vista o objeto de estudo. A história bíblica e o sobrenatural são indissociáveis.

O humanismo de Espinosa é resultado do esvaziamento de Deus. A identificação do criador com a criatura pode ser realizada no intuito de elevar a criatura, mas como resultado depara-se com o rebaixamento do criador e com a subseqüente perda de valor da criatura. Quando Marx, por exemplo, fala da reificação do homem, faz uma análise profundamente cristã do problema, rejeitando, no entanto a solução lógica que seria reestabelecer o criador que dá valor ao ser humano. Essa análise do problema do valor do ser humano sem a resposta adequada desemboca no totalitarismo socialista, a mera substituição do tirano.

A Bíblia revela um Deus todo-poderoso com uma ressalva: Ele é fiel a si mesmo. Se fiel a si mesmo, podemos confiar (e Deus se mostra ao homem, dando prova disso) na sua palavra. A palavra de Deus, a promessa de Deus, é nosso escudo contra a arbitrariedade do poder infinito Dele, bem como do arbítrio (muito pior) do homem, seja o tirano, o aristocrata ou o povo reunido em assembléia. Nossa razão, dada por Deus, bem como a Bíblia, apontam para um princípio de não contradição d’Ele; esse princípio significa que Deus não agirá contra sua própria vontade conforme revelada na sua palavra.

Ora, a experiência mostra que o homem tem para o próprio homem o valor de coisa. A crítica marxista da reificação do homem é mais velha do que si própria e é uma percepção da natureza maligna do ser humano. Espinosa já mostra que amamos ou odiamos os outros conforme sua capacidade de nos causar alegria ou tristeza. Esse homem inconstante não pode ser a medida, o padrão, que confere valor ao próprio homem. A ética que tem o homem como valor absoluto não serve de nada. O próprio Espinosa não consegue escapar dessa premissa e começa seu livro falando de Deus em primeiro lugar, apesar de defender uma idéia de Deus absolutamente vazia, e por isso mesmo herética.

A questão da liberdade, que é uma tônica na Ética de Espinosa (parte V), esbarra em uma questão fundamental: a liberdade sem um sentido é absolutamente nula. A liberdade serve para que possamos perseguir um fim sem sermos impedidos. Se não há o que buscar a liberdade só serve para o exercício ou a expressão de nossa natureza má. O caos é a liberdade sem sentido, a ordem é a liberdade orientada para um fim bom. Liberdade como valor isolado não serve para nada. A falta de Deus ou sua substituição por motivos, símbolos ou causas meramente humanas tornam a liberdade o princípio da tirania.


A fé na evolução humana por meio da difusão do conhecimento adequado da natureza e da alegria é ingênua se confrontada pela experiência e pela Escritura; ambas retratam um homem caído, separado de Deus, mau. A Bíblia revela não só a queda do homem como também a sua meta: a religação (religião) com Deus. O verdadeiro sentido da vida humana aponta para o Deus transcendente da Bíblia, não para a natureza (podemos igualmente lembrar do bom selvagem de Rousseau, a noção de homem “naturalmente” bom e que viverá bem se voltar à vida antes da cultura, mas este é outro autor que merece a atenção que o tempo não permite dar).

A excomunhão de Espinosa nos ensina em primeiro lugar que não se excomunga ninguém por motivos políticos e sim teológicos. Espinosa não foi excomungado por defender a liberdade humana, o que fez defendendo um individualismo radical mesmo para os dias de hoje, mas por defender uma idéia imanentista e vazia de Deus, contrária à experiência religiosa verdadeira. A segunda observação é que devemos entender quão grande é a falácia de que o homem se basta, uma vez que a rebelião do homem contra Deus, reeditada pelos liberais iluministas e pelos filósofos de influência scchopenhaueriana (incluindo o próprio) tem resultados práticos desastrosos.

quarta-feira, maio 31, 2006

Virtue found

Obrigado a todos vocês que me ajudaram nas buscas pela amiga Virtue. Ela foi encontrada, passa bem, e criou um maravilhoso blog com links dos mais proveitosos. O endereço pode ser encontrado em minha recém inaugurada sessão de links, a qual certamente não será atualizada tão cedo, de modo que recomendo uma visita ao blog de minha amiga. No mais, agradeço a compreensão e em breve seguiremos com nossa programação normal.

segunda-feira, maio 22, 2006

Sobre os últimos acontecimentos

“ Deus é Espírito, e é necessário que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.” (João 4:24)

“O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida.” (João 6:63)

Ruagh é o espírito, o sopro da vida, o fôlego, a sede da vontade, o vento que percorre a Terra toda e por tudo passa, o hálito, a própria capacidade intelectual humana. Esta palavra condensa nossa capacidade mesma de, desde já, participar do divino, transcendendo a matéria e experimentando a algo mais próximo da totalidade do mundo.

Vivemos tempos em que o vento quase não sopra mais, já não carrega para longe o fedor dos corpos podres que nos cercam. Enquanto estamos acossados pela premência de lidar com os efeitos psicologicamente devastadores do medo, resignados com nosso papel de expectadores e vítimas do drama que se desenrola nas mais diversas regiões da nação em suas diferentes formas, somos incapazes de identificar o mal e dar-lhe um nome.

O pensamento cientificista de nosso tempo, essa fé no deus ciência, nada mais é que a perversão da porção humana que participa no divino por sua capacidade intelectual, e nos imbui de um impulso classificatório que leva logo a apontar os problemas como econômicos, sociais, políticos, educacionais e assim por diante. Acreditamos, à maneira gnóstica, que tais frentes podem ser atacadas e corrigidas de modo a resolver as causas do mal no mundo em sua diversidade e instituir finalmente uma paz social reinante. Ao estudar nossas dificuldades conforme os parâmetros da ciência, acreditamos que temos o poder de mudar a realidade automaticamente, como se fôssemos imperadores na ilha de Próspero e fizéssemos prodígios com uma simples varinha. A verdade é que esse orgulho nos torna piores do que Calibã, pois ao contrário do monstro, permanecemos iguais apesar da experiência sofrida.

O padecimento do espírito é o fruto direto da sua negação. Quanto mais falhamos em reconhecer a hierarquia das causas e conseqüências, bem como sua sede primeira como sendo metafísica e não material, estaremos fazendo eloqüentes discursos sobre o vazio (embora isso seja talvez injustiçar o vazio, tema de grande e rico debate científico ao longo da Idade Média). O espírito cobra a atenção que lhe é devida quando a atomização dos problemas que nos aterrorizam acaba por deixar escapar a única coisa que perpassa a sociedade cindida, o único elemento de transcendentalidade que poderá restaurar algum sentido de ordem no mundo. Primeiro o espírito deve ser atendido, só então as demais estruturas, produtos do espírito que nos anima, serão transformadas.

A negação da metafísica (nome pelo qual os filósofos acharam por bem chamar o domínio do espiritual, fazendo uma aproximação talvez um tanto grosseira) é a negação do transcedental, e nos reduz a meros animais. Não é de surpreender, por tanto, que atos animalescos sejam cometidos por muitos em tempos de crise. Por causa dessa limitação imposta aos homens pelos homens, de não mais acreditar no espírito divino e na porção humana que dele participa, os horizontes das pessoas tornam-se tão claustrofóbicos que as lançam no mesmo desespero que agora se experimenta. E o desespero só conhece uma saída, ele clama por sangue, clama pela morte de si ou do outro.

Somente se acreditamos na transcendência podemos acreditar na medida única que perpassa todos os homens. Somente com essa medida podemos entender que há o certo e o errado. Somente assim podemos acreditar no pecado. A partir do momento em que o homem não mais é capaz de pecar, em que a moral é relativizada por ser exclusivamente imanente, questão de convicção pessoal, as pessoas são lançadas em uma espécie de psicopatia somente mitigada por uma vaga lembrança do espírito perdido na modernidade. Se não podemos pecar, não podemos nos arrepender e nem nos redimir. Se não existe redenção, a dimensão teleológica da existência nos falta e nos tornamos aleijados espirituais, sem rumo, sem objetivos últimos. É por isso que, ao ver os últimos acontecimentos, é fácil pensar nas pessoas como se fossem animais. De certo modo o são. De certo modo, por outro lado, somos nós os animais ao não ver nos outros uma essência de homens, ou por acreditar que estão além de redenção.

Diante deste descaminho quase absoluto do mundo só resta uma saída: a redescoberta do mal e a redescoberta de Deus. Falo da redescoberta do mal porque enxergamos o mal por uma lente distorcida. Kant estava correto em acreditar ser impossível fundar uma moral alheia à religião. O fato de não identificarmos o mal e a morte com o pecado nos impossibilita o acesso a Deus por meio da redenção que ele graciosamente oferece. É imperativo que redescubramos o estatuto verdadeiro do mal no mundo. Depois disso, precisamos redescobrir o estatuto do mal em nós. Nosso coração pecaminoso, nossa própria crueldade. Depois de vermos o mal em nós, devemos nos arrepender. Por fim, e somente após ter feito tudo isso, iremos encontrar o mal nos outros e, amorosamente, falar-lhes sobre a redenção. Este é o princípio da solução das mazelas do mundo hoje. Qualquer explicação menos abrangente deixará o mais importante e fundamental de fora.

segunda-feira, abril 24, 2006

Virtue, where art thou?

Querida Virtue,

Recebi seu coment e, embora possa dar alguns bons palpites acerca da sua identidade, não consegui uma indicação clara de qual fosse, nem de como entrar em contato por outro meio que não meu próprio blog. Quanto ao Orkut, veremos, veremos...

Um beijo,

Tiago

P.S. Aos demais leitores adianto que apagarei este recado tão logo fizer contato com esta amiga que procuro.

sexta-feira, abril 14, 2006

Se um rapaz cabisbaixo...

Um rapaz que anda cabisbaixo numa rua escura não tem nome. Não precisa de um. Sua função na ordem do universo é meramente ser um rapaz cabisbaixo cuja circunstância é andar por uma rua escura. Se lhe damos assim sem mais nem menos um nome, torna-se uma pessoa. Esse giro ontológico causa toda a espécie de problemas que eventualmente culminam na criação de um ou mais livros nos quais se desenrolam ações internas e externas devido à interação do rapaz com as circunstâncias nas quais está inserido. Procaria-se algum motivo para que estivese na rua, para que saísse da rua escura, dar-se-lhe-ia pensamentos sobre sua vida imaginada ou vivida, conforme o contexto no qual encontramos o rapaz (em um conto, por exemplo, ou no mundo real) e ele então colocaria o observador e fiel depositário do olhar sobre sua caminhada pela rua escura na difícil tarefa de revelar uma miríade de detalhes que o tornassem interessante ou ao menos um pouco mais humano. Tudo isso é necessidade, como dizia, gerada pelo ato simples de nomeá-lo.

Claro, um rapaz que precise ser nomeado não é um rapaz real. Um rapaz cabisbaixo de verdade possui um nome, e sem dúvida deve fazer bom uso dele a fim de "funcionar" no nosso mundo atual. É comum hoje, em relação aos rapazes cabisbaixos reais, o giro ontológico contrário. Um problema comum no estado moderno é justamente o fato de que está-se excluindo progressivamente o espaço para que rapazes cabisbaixos tenham nomes ou mesmo pensamentos. Isso seria acabar com a isonomia com a qual a burocracia democraticamente trata a todos. Trata mal, é verdade, mas é obrigada por lei a tratar igualmente mal.

Então, prosseguindo, o rapaz, ironicamente fadado a andar pela rua escura, cabisbaixo, tem em sua breve existência (que já conta de cinco minutos completos) uma série de problemas filosóficos, gramaticais e políticos com os quais deverá se haver um dia, caso venha a fazer perguntas bastante apropriadas a um rapaz inteligente que por um acaso venha a deparar-se com um volume de filosofia ou teologia, e poderia então revoltar-se contra aquele que lhe conferiu essa existência não empírica de ente puramente intelectual. Supondo que o faça, ficaríamos bastante surpresos com tamanha ingratidão, em especial considerando que o criamos faz pouco mais de seis minutos, agora.

Seria, no entanto, muita arrogância esperar qualquer espécie de reconhecimento por parte do rapaz que anda cabisbaixo pela rua. Ou não? Se, dentro de nossas possibilidades, fomos benevolentes o suficiente para conceder-lhe existência, o rapaz poderia estar um pouco mais feliz. Todavia, poder-se-ia argumentar que o rapaz anda cabisbaixo porque, conforme o criamos, não poderia andar de outra maneira. É bem verdade que não conseguiríamos, dentro de nossas capacidades, fazê-lo dotado de alguma espécie de autonomima. Seria necessário um ente bem mais capaz do que eu para fazer um rapaz cabisbaixo que pudesse olhar dos confins de nossa mente para nós mesmos e erquer os punhos revoltado por estar naquela rua escura. Desse modo, qualquer revolta, além de inútil, seria uma impossibilidade.

Somos tentados a nos perguntar, após esta breve investigação, se não seria essa a principal diferença entre o rapaz cabisbaixo real e o imaginado. Falo do rapaz real porque é possível que enconremos em algum lugar no mundo um rapaz que atenda a essas condições tão simples que possamos chamá-lo, num sentido figurado, a tomar parte em nosso exercício. O rapaz real poderia então erguer os punhos em revolta contra sua circuntância. Ele possui um nome, e possui pensamentos que muitas vezes escapam a qualquer controle, inclusive o seu próprio. Ele existe independente de nossa vontade, tomamo-lo como um rapaz dado na realidade empírica. Este rapaz está andando em um mundo dotado de um senso de história não-cíclico, afinal o futuro não aconteceu, e o passado já está além de nossa esfera de ação. A ação e o pensamento acontecem no presente do rapaz que caminha cabisbaixo. Tudo que lhe é dado é dado agora. Seria então possível que seu futuro fosse determinado ou sequer conhecido?

Para que um futuro seja conhecido existem duas condições. A primeira é a observação da repetição de um evento. A segunda é a capacidade de produzí-lo. Se alguém for poderoso o suficiente para garantir que um evento se produzirá no futuro, poderá ser um cientista. Se essa pessoa pode produzir todos os eventos que de fato ocorrem no universo, essa pessoa é necessariamente Deus. Isso deixa pouco espaço para o indeterminado. O espaço de ação que teríamos seria muito pequeno, se houvesse algum. Seríamos ontologicamente iguais ao rapaz cabisbaixo imaginado. No entanto, cremos que não é assim. Somos livres para realizar ao menos uma grande escolha dentro dessa ordem de coisas. Nossos atos de volição não são determinados por nada além de nossa própria capacidade de imaginar, de modo que a natureza não pode refrear o gênio humano com sua necessidade absoluta. Desafiamos o meramente orgânico a todo o tempo, e isso constitui a prova mesma da liberdade da qual fomos dotados para que fôssemos muito mais interessantes do que meros rapazes imaginados para investigações hipotéticas numa tarde de sexta-feira. Podemos acreditar nesse Deus ou não. Podemos acreditar Nele e ainda permanecer insubmissos, levados pela idéia de falsa liberdade que e aquela de agir conforme nossa própria vontade, ou poderíamos aceitar um conhecimento de ordem superior ao nosso, tomando parte da mente de Deus por meio da realização da vontade Dele. Embora Ele seja condição de nossa existência, quer o neguemos ou não, não somos condição da existência Dele. É por isso que nosso conhecimento de Deus não ocorre da forma tradicional, relação sujeito-objeto. Para explicar nosso conhecimento de Deus é necessário que concebamos uma relação diferente de conhecimento, porque Deus não se poderia jamais colocar como objeto de investigação das criaturas Suas. Podemos interpelar a vontade de Deus, conforme revelada, mas não podemos interpelar sua pessoa, como fazemos a um objeto de estudo.

O fato de nos perguntarmos sobre nossa existência mostra como fomos trazidos a ela por uma pessoa muito superior a nós. Jamais poderíamos conceder a liberdade de fazer tais indagações a algu que criássemos, somente poderíamos colocar em sua boca nossas próprias dúvidas a esse respeito.

domingo, abril 09, 2006

Frase divertida.

Achei essa frase genial citada por Roberto Campos. Parece bastante apropriada para o cenário brasileiro. Aproveitanto o ensejo, faço votos para que todos votemos nulo nessa eleição, porque se não estamos arrependidos pelo congresso que elegemos (e aquela quadrilha que se apossou do executivo em nome dos trabalhadores), perdemos o direito de esperar que nosso voto ofereça qualquer coisa melhor do que uma desculpa para faltar ao trabalho... Lá vai ela:

"É verdade que há vários idiotas no Congresso. Mas os idiotas constituem boa parte da população e merecem estar bem representados".

Hubert Humphrey, vice-presidente dos Estados Unidos na administração Lindon Johnson.

In: http://www.clicrbs.com.br/clicrbs/especiais/diversos/roberto_campos.htm
no texto Leis da Política

Lembrei do PT porque na campanha do Excelentíssimo Degustador de "Aguardente de Cana-de-Açúcar produzida no Brasil" (nossos negociadores têm tentado desesperadamente fazer esse nome substituir o escrito "Rum" nos rótulos de cachaça dos EUA) que nos olha do alto do planalto como um pai amoroso, falava-se muito que a esperança venceu o medo. Qualquer bom leitor de Thomas Hobbes veria nessa campanha que emprestou seu slogan da teoria política do filósofo inglês uma espécie de propensão a, chegando-se ao poder, acabar com as facções e instituir o grande Leviatã petista. Todavia, o caldo entornou. Eles agora contarão com os idiotas da população a quem tem representado como seria de se esperar para mais uma vez levá-los à seca e ensolarada Brasília. Acho que vamos precisar engolir muita cachaça para digerir outros quatro longos anos de Lula.

segunda-feira, abril 03, 2006

No Reply

Essa música é uma das minhas favoritas. Está aqui porque é apropriado que esteja. No mais, como disse o filósofo, "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar".

No Reply - Yoko Kanno

"Like the perfect ending,
It won't be long,
Till everything I've ruined has seen me gone,
In time, I pray you'll forgive,
Now you know the man I am,
Can you forgive me?

I fall,
Like the sands of time,
Like some broken rhyme,
At feet no longer there.

If only I could call the rain to melt and wash away the pain you feel
I would
You gave yourself to me and showed me what the truth could be
For that, I say thank you
This was my life
It never made much sense to me...

With every lie that I lived,
Part of me would fade,
Into this empty shadow I've become,
And now I feel so numb,
I no longer know myself,
But I still know you.

I call,
And there is no reply,
Like some phantom cry,
On ears too far away,

I close my eyes and watch as my life passes by,
The only thing I see is you,
For all the times you walked the line for me and standing by my side,
I say thank you,
Here lies my life,
It never felt that real to me.

You'll always mean so much to me,
And there's no reply,
And there's no reply,
You'll never know how much you meant to me,
And there's no reply,
And there's no reply,
You'll never know how much you meant to me.

If only I could call the rain to melt and wash away the pain you feel.
I would.
You gave yourself to me and showed me what the truth could be.
For that, I say thank you.
This was my life.
It never made much sense to me...

I close my eyes and watch as my life passes by,
The only thing I see is you,
For all the times you walked the line for me and standing by my side,
I say thank you,
You in my life,
It all meant so much more to be."

Certas coisas não tem remédio. Mesmo assim, seria apropriado reconhecer com honestidade o que ficou. Fica o meu muito obrigado, de coração. Fica minha sincera desiderata, de felicidade, de amor, de que sorriso algum seja jamais manchado de uma mágoa qualquer. O travor da amargura na boca pode às vezes nos impedir de apreciar os sabores mais sutis e maravilhosos da vida. Não convém ficar demais assim. Comvém esperar (e receber) mais vida, mais amor, mais felicidade e quem sabe um pouco de paz.

domingo, janeiro 29, 2006

Acreditar no Amor

Eu ainda acredito no amor. E ainda espero que, apesar das circunstâncias difíceis que nos cercam todos, o amor ainda acredite em mim. Não parece razoável crer que ainda haja uma afeição tão pura que possa resistir a toda a corrupção tão fácil, tão atraente, que cerca a existência de cada um nesses tempos tão terríveis, mas ainda deve existir uma última resistência: loucos que, como eu, ainda acreditam no amor.

O amor às vezes é caprichoso e demora a se mostrar. Alguns já estão tão cansados de ser enganados por pseudo-amores, amores grávidos sempre da mesma desilusão, que não podem suportar a idéia de amar de novo. Isso é um crime horrendo. É o aborto do amor verdadeiro e, embora eu entenda melhor do que ninguém a dor que leva as pessoas a cometê-lo, é necessário parar de sufocar aquilo que há de mais belo por causa do medo.

Eu ainda acredito no amor, mas isso exige coragem. Muitas vezes me encontro absolutamente cansado, pronto para desistir de lutar, desejoso de que o amor acabe e a vida possa seguir sem mais perturbações do coração. Nessas horas me lembro, ao contemplar o mundo feio e vazio do desamor, como o amor é belo, como traz à luz o que há de mais encantador, mais puro e mais duradouro dentro de cada um. O amor é a preservação da vida, não da própria, mas da vida de quem se ama. É pensar no outro antes de si, e assim, quando amamos e somos amados, nos esquecemos de nós e ainda sim somos felizes, porque há alguém olhando por nós, fazendo uma prece singela e silenciosa por nossa felicidade. Sem amor nosso egoísmo nos leva a erguer reclamações vazias aos céus reclamando mais e mais para satisfação do próprio desejo, e não há nisso nada de agradável aos ouvidos de Deus.

Ainda acredito no amor, porque a alternativa é ainda pior do que sofrer por amor. A morte do amor é o fim da esperança, pois se não amamos não há o que esperar além da morte que chega apesar de tudo. Por isso tenho esperança, e se espero, é prova de que acredito no amor. O amor já me desapontou, mas se eu desanimasse, seria muito mais infeliz por saber que cada tristeza seria o fim. Se desanimamos no amor, pomos ao fim de cada riso, de cada beijo, de cada olhar, um ponto final. Após o ponto, não resta nada. Após o amor, no entanto, resta a verdadeira sabedoria, aquela de não ter vivido em vão.

Ainda acredito no amor, pois sei que o amor é perene para aqueles dispostos a assumí-lo. Acredito que podemos superar a dor, que é passageira, para enfim descansar nos braços de alguém que nos queira bem. Mas só se pudermos desistir de tudo, e tudo entregar. Se não tivermos mais apego à nossa mesquinha liberdade, à independência que não passa de um apelido para a solidão, se ousarmos acreditar, seremos capazes de qualquer coisa.

Ainda existem aqueles que acreditam no amor, mesmo que agora estejam entre as lágrimas. Mesmo o amor passado, que choramos por muito tempo, não foi vivido em vão. Ele nos mostrou que existe em nós ainda alguma fibra para resistir as investidas do mundo inteiro, e encontrar um canto escondido dentro da alma que ainda é capaz de se deixar tocar pela beleza.

Acreditar no amor é ter fidelidade a si próprio. Negar o amor é trair a si e a quem se ama. Acredito no amor e não vou desistir de amar porque na noite mais solitária, na angústia mais negra, na dor mais intensa, a lembrança do amor me valerá; e quando for feliz, serei muito mais feliz do que jamais poderia esperar. E nada no mundo traz uma felicidade mais luminosa e intoxicante, mais terna e libertadora, do que o amor

terça-feira, janeiro 17, 2006

Silêncio

Existe algo reconfortante no silêncio. A total ausência de choro, riso, vozes, barulhos incidentais. Tanta gente se preocupa em fazer trilhas sonoras sentimentais da vida, e esquece que em algum momento houve um princípio em silêncio. Antes do primevo vagido, havia uma existência privada de expressão, havia um universo de sensações veladas cuja experiência era exclusivamente pessoal, e por isso o que havia de mais autêntico antes de chegarem as hipocrisias do mundo.

Pense, mas não fale; fale, mas não escreva; escreva, mas não assine. Se fosse capaz de observar essas regras não teria sido mais feliz, mas teria sido menos triste.

Reconfortante eu dizia, porque o silêncio não traz notícias ruins, não traz ventos de mudança, não traz contradições, não faz confusão, não se perde pelas palavras, não gera desacordo. Um mundo de silêncio seria impossível para qualquer um de nós, mas justamente por isso o silêncio é tão precioso nesse mundo em que somos tão apegados ao barulho.

As coisas mais belas que sentimos talvez não possam ser ditas. Seria diminuí-las e humilhá-las. Seria submetê-las à compreensão e à interpretação de alguém que desconhece a maneira pela qual elas foram compostas, que não nos sabe por inteiro e jamais poderia apreciar, por meio de meras palavras, a maravilha do sentimento em si.

Algumas coisas simplesmente não merecem ser ditas. Sobre certas coisas a observação do silêncio é a única resposta inteligente. Guardar para si o que há de pior e também o que há de mais sincero pode não ser recomendado pelo terapêuta, mas nos permite controlar o que esperamos que se pense de nós, porque ninguém é realmente capaz de aceitar o outro tão completamente. Somos juízes impiedosos dos outros, e ao julgá-los aprendemos que há muito sobre nós mesmos que convém calar.

Alguém mais experiente do que eu já disse que jamais devia um homem dizer "eu te amo". Seria expor-se demais e ninguém, por mais que ame, deveria se colocar à mercê de outra pessoa tão facilmente. Afinal não se sabe ao certo qual a real capacidade da amada para a crueldade. E nem, quando ferido o orgulho, a sua própria capacidade para ser cruel.

Existem coisas que não convém dizer a nós mesmos. Quem saberia dizer que monstro abrigamos debaixo da casca da nossa pele? Quem saberia se não é, pelo contrário, um santo que, liberto, nos obrigaria a tomar sobre nós mesmos dores muito piores do que queremos suportar? Viver pela metade é o desejo que aflora nos depressivos, não viver é o que querem os suicidas. Não falar é o hábito dos tímidos, que são muito cuidadosos em preservar suas personalidades ao invés de aniquilá-la. Nesse sentido, os extrovertidos se assemelham muito mais aos suicidas. Qual é a diferença entre se diluir em meio à massa humana que nos cerca e deixar simplesmente de existir? Convém viver calado, pois assim se salva a distinção entre os próprios pecados e os pecados dos outros. Seria muito cruel ser vítima de ambos.

Viver é perigoso demais. Melhor é observar, diligentemente, o silêncio.