terça-feira, novembro 27, 2007

Lições de Minha Avó

Hoje estive pensando em minha avó. Com toda sua simplicidade, ela descrevia, ao longo de nossas conversas longas e agradáveis, o que esperava encontrar quando chegasse ao céu. Minha infância foi povoada dessas imagens relatadas por minha avó. Eu ficava escutando, entre curioso e divertido, enquanto ela imaginava, ou talvez antevia, as pessoas que encontraria e a alegria imensa que sentiria ao lado de Deus.

Eu ficava intrigado e tentava entender como vovó conseguia passar cada dia, o dia todo, entretida com esta visão extraordinária. Em sua simplicidade o exemplo de minha avó foi marcante porque ela soube perseverar por anos a fio, lendo a Bíblia com atenção e refletindo sobre o que lia, imaginando e sonhando com as peregrinações do povo de Israel, muitas vezes associadas com as peregrinações dela própria pelo Brasil, de norte a sul buscando um lugar para descansar.

Quanto tempo levei para entender a alegria e o gozo que ela sentia nesses momentos. Quanto tempo levei para enxergar um pouco do que ela mesma me falava, antes de antever a felicidade que aguarda no céu aqueles que foram separados por Deus e salvos por meio do sacrifício de Cristo!

A sabedoria verdadeira residia ali e eu não era capaz de reconhecê-la. Em ler a palavra de Deus, anunciá-la e esperar pela partida desse mundo. Aguardar uma existência muito mais perfeita ao lado do pai. A partir do momento em que comecei a enxergar estas coisas entendi a razão para a insistência de minha avó em falar a todos quantos queria bem sobre o céu que esperava. Uma vez que percebemos que esta vida não é nada perto do que Deus guarda para nós, queremos rever no céu todos aqueles que amamos nesta terra.

Eis onde está nossa esperança. Está onde não pode ser maculada pelo pecado, consumida pelo fogo da guerra ou devastada pelo gelo da indiferença humana. Tal intuição, longe de irracional ou emotiva, me veio após muito pensar. Não fui o primeiro nem serei o último a ficar perplexo diante desta maravilha da palavra de Deus, que se revela aos simples e também, embora ás vezes com mais dificuldade, aos orgulhosos estudiosos – ensinando a estes a humildade diante da contemplação da sabedoria divina. Foi dessa maneira que o apóstolo Paulo se viu diante da mensagem do Evangelho, sem se envergonhar, mas afirmando, do alto de todo o entendimento que reconhecidamente tinha: “porque conheço (oi=da) em quem tenho crido e estou persuadido (pe,peismai) que ele é poderoso para guardar meu depósito até aquele dia” (2Tim. 1:12).

O texto revela duas coisas importantes: a persuasão da verdade do Evangelho, e a esperança da recompensa ”naquele dia”. Creio que é um pouco vazio ficar discorrendo somente sobre a primeira parte (como venho fazendo um pouco por gosto um pouco por afinidade com o assunto). Já afirmei de diversas formas que fui persuadido do simples mistério da piedade sobre o qual escreve o apóstolo Paulo: “Deus se manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto pelos anjos, pregado entre as nações, crido no mundo, recebido na glória.” (1Tim. 3:16). O que não havia falado ainda era sobre o êxtase provocado pela esperança no futuro. Dessa maneira procuro corrigir-me e afirmar sem vergonha alguma que espero pela vida eterna após a morte, quando serei, com tantos outros, recebido na glória de Deus.

A felicidade só existe realmente depois que conhecemos o amor de Deus. Esse é o único testemunho que posso dar. O que quer que possamos experimentar de bom neste mundo é uma mera sombra do pouco que hoje antevejo, do que minha avó me descrevia, da vida que povoa meus sonhos, da esperança que me sustenta a cada manhã e ao longo do dia até que este finde, da glória eterna, da companhia do Altíssimo e dos seus santos.



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sábado, novembro 24, 2007

Reinaldo Azevedo está em ótima forma neste artigo: http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/2007/11/mdia-do-contragolpe.html

A mídia do Contragolpe. Até o título é bastante oportuno. Sofremos um golpe por parte da esquerda. Um golpe que substituiu inclusive nossas melhores esperanças de ter algo parecido ocom uma cultura no Brasil por um amontoado de ideologias em torno das quais "artistas" e "intelectuais" auto intitulados procuravam construir alguma coisa que fizesse vir logo o paraíso hipotético prometido pelo esquerdismo revolucionário, e que nunca veio. Agora, é chegado o momento de estabelecer uma contracultura conservadora (também uma contracultura cristã - sem nenhuma referência ao site defunto de Rob Schalpfer - é necessária, mas isso é outra história) a fim de estancar a decrepitude na qual fomos lançados de corpo e alma.

Quando eu ouço - como de fato ocorreu um pouco antes de sair do Brasil - um senhor que apoiava a Ditadura e furava greve com a cabeça erguida defender o Lula, começo a pensar que alguma coisa fizeram nesses trinta anos passados que não é normal por qualquer padrão que se tenha. Espero que possamos acabar com esse estado de coisas como se fez nos Estados Unidos: demonstrando uma gritante superioridade intelectual e de caráter. Nada menos que isso pode trazer ao Brasil um sopro fresco de velhas novidades que um dia trocamos pelos sonhos destes iluminados que agora nos afligem.

Aproveitem o link, vale muito a pena.

quinta-feira, novembro 15, 2007

Bach, O Quinto Evangelista

Existe um site da sociedade Bach do Brasil. Eu nem fazia idéia da existência mesma de uma sociedade Bach do Brasil em primeiro lugar, de modo que achei a descoberta toda maravilhosa. No site da sociedade consta um artigo que achei fantástico, de autoria de Celso Brandt. Não vou me adiantar e falar o que o próprio autor já deixa registrado no artigo, contento-me em recomendar e deixar o link aqui para quem quiser ler.

http://www.bach-brasil.com/index.php?page=quintus

A apreciação da estreita ligação entre a arte superior de Bach e a Reforma Protestante é o que me cativou aqui. Confiram.

terça-feira, novembro 13, 2007

A Cuba de Barrueco


Muitas vezes escrevo sobre filosofia ou política, algumas vezes sobre arte, principalmente sobre música. Sempre achei um exemplo acabado de cretinice, principalmente por parte dos artistas, misturar as duas coisas. Vou tentar escapar de minha censura auto imposta e me aventurar a fazer essa mistura, pois é necessário ressaltar os exemplos formidáveis de artistas que, sem sequer fazer propaganda política, e dizendo mais com sua postura do que com manifestos e coisas do gênero, são capazes de se insurgir contra o mal imposto a milhares de homens e mulheres por governos opressores.

Um dos artistas que mais amo e admiro é o violonista cubano Manuel Barrueco. Não falo apenas do artista celebrado nas salas de concerto do mundo todo, nem do professor dedicado do Peabody Insitute, parte da John Hopkins University, em Baltimore, Maryland. Falo de um artista com alma, que transparece não só nas interpretações musicais, mas na aguda consciência que parece muitas vezes esquecida, em relação ao sofrimento humano.

No documentário Manuel Barrueco, a Gift and a Life, ele reconta, entre outras coisas, a situação que o levou a aportar em Miami no ano de 1967. Barrueco se recorda que ainda novo, em Santiago de Cuba, via os revolucionários chegando pela rua, suas fardar verdes, as barbas, após a derrubada do governo cubano pelos guerrilheiros de Fidel, como se fossem anjos. Logo após ele conta como ficou desapontado, ao ver as liberdades de seu povo caindo uma por uma, e como ficava preocupado com sua mãe, que não se contentava em pensar ou falar somente coisas aprovadas pelo governo.

O artista (e aqui eu falo de artista em um sentido estrito, não dos tratantes que se auto intitulam artistas) passou pelo processo de esperar por cinco anos antes de ter sua saída de Cuba aprovada, junto com a família, e narra como se deu sua chegada aos Estados Unidos. Quando finalmente saiu, foi uma das experiências mais dolorosas de sua vida até hoje. É uma história comovente, na qual fica a profunda impressão de uma dor e uma tristeza pela necessidade de deixar a terra natal. Ele demonstra uma grande simpatia pelos refugiados cubanos que, desesperados, se lançam na água em botes precários para alcançar a liberdade. E leva este sentimento muito a sério.

Seus amigos ouviram dele em primeira mão o drama de não ter liberdade, não poder sequer deixar seu país, por pior que isso possa ser, para buscá-la. O problema político é tão grande para Barrueco que ele não vai visitar a irmã que não vê há anos por não se permitir ir a Cuba enquanto Fidel e seu regime se mantiverem na ilha. Um dos mais dolorosos desapontamentos que sofreu foi ver seu grande ídolo, o compositor Leo Brouwer, manifestar apoio ao governo cubano no episódio da execução das pessoas que tentaram seqüestrar um barco e fugir da ilha em abril de 2003. O grande amor por Cuba deste refugiado, que prosperou nos EUA por seu talento e trabalho, é realmente tocante.

Tamanha integridade, quando seria mais fácil voltar e ser muito bem recebido em Cuba, seu testemunho do sofrimento causado pelos revolucionários que põe a causa acima das vidas alheias (poucas vezes das próprias, a menos que sejam inocentes úteis colaborando com o que nem bem conhecem) é algo a ser aspirado e imitado. Fico imaginando se ele talvez não volte por saber que a Cuba que encontrará não será a sua Cuba, aquela da qual tem saudade, e sim uma ilha desfigurada por tantos anos de construção do "paraíso socialista".

Quanto à arte de Barrueco, creio que haja pouco que eu possa acrescentar além do que os jornalistas, críticos, público e as próprias gravações já deixam claro. É um grande astro do violão erudito hoje, certamente o mais brilhante de sua geração (confesso isto apesar de todo o respeito e atenção que dedico a Sharon Isbin, David Tanenbaum, Eliot Fisk...), certamente um intérprete que não será esquecido nos anos por vir. Longe de ser um conservador na música como o era Segovia (bem, Segovia sempre me pareceu um conservador em praticamente tudo, um tipo bastante old fashioned, o que para mim nunca foi demérito) Barrueco procura fazer pontes entre a música erudita e as demais formas de expressão musical, tendo feito álbuns dos mais interessantes como Nylon and Steel (com Al Di Meola), Sometime Ago e Manuel Barrueco Plays Beatles.

Muito embora prefira o Villa-Lobos dos irmãos Assad ao de Manuel Barrueco, tenho cá comigo que ele foi excepcionalmente feliz em todas as interpretações que escutei. Seu Bach soa como música feita diretamente para o céu, como, na minha opinião, Bach deve sempre soar. O álbum de Bach e deVisée é um dos álbuns que mais me marcaram (com a Partita no 2, BWV 1004 in D minor de Bach, a obra que me introduziu ao violão erudito) e sempre lhe serei grato por me ter proporcionado tão bons momentos na companhia de sua música. Um aparte pessoal: lembro de ter gravado na TV e assistido com meu amigo Eduardo uma apresentação de Barrueco em que ele tocava o Concierto de Aranjuez e algumas coisas do Chick Corea. Assistimos a fita tantas vezes ao longo dos próximos meses que ela quase não resistiu. Passavamos horas contemplando o vídeo, os olhos fixos nas mãos do violonista. Esse tipo de fascinação não é inédito em se tratando de um músico verdadeiramente extraordinário.

Longe de ter uma técnica calcada somente na velocidade, como acusa Luís Nassif (um homem que, a meu ver, entende tanto de música quanto Bob Esponja entende de Leibniz), Barrueco apresenta uma sensibilidade tão grande a ponto de fazer com que nos esqueçamos dele e sintamos, deliciados, música pura passando por dentro de nós. Sua sensibilidade é integral, artística e humana. Sua história é inspiradora. Por estas razões rendo minha homenagem ao grande artista Manuel Barrueco.

segunda-feira, outubro 29, 2007

E. V.

Tenho falado muito sobre Voegelin recentemente porque ele é o filósofo que tenho estudado com mais cuidado, e cuja obra estou fazendo todo o possível para digerir. Espero que não me achem muito chato por isso.

Ab.

Tiago

O abismo

Existe um abismo intransponível entre o ser humano e Deus. Isso foi percebido pelo primeiro quando se deu conta pela primeira vez que sua existência era finita, mas que outras coisas no mundo permaneciam inalteradas. Este insight fundamental deu origem às primeiras especulações a respeito da divindade e foi o fundamento sobre o qual a religião se estabeleceu. Tal é a interpretação que Eric Voegelin dá aos provaveis eventos, se não históricos, ao menos lógicos, na busca do homem pela ordem do ser.

É importante colocar as coisas desde a origem em seu devido lugar. Algo importante que Voegelin esclarece é que especulação teológica é uma especulação sobre a realidade. Este dado fundamental deve ser considerado e me parece ter sido esquecido. O pensamento especulativo voltado para a natureza acabou por se afirmar com tal firmeza no pensamento ocidental que temos às vezes a impressão errada de que a teologia não diz respeito à realidade. A sanha desmistificadora de pretensos cientistas, aliada à confusão causada pelas seitas e pelos cultos que acabam por falsificar a verdadeira religião (um dado quase tão antigo quanto a religião em si, uma vez que a Bíblia já relata a existências de feiticeiros e divinadores que deveriam ser evitados) são fatores que nos atrapalham na tarefa de procurar uma compreensão abrangente da realidade.

Mesmo os cultos a divindades em forma de animais, divindades incorporadas em reis, deuses identificados com os astros, que muitas vezes são vistas em nossos dias como algo estranho, como uma espécie de crendice da infância da humanidade, são resultado da especulação teológica possível para aqueles que iniciaram tal atividade. Sua intenção era identificar aquilo que era perene, e separar do que era efêmero. Esta orientação da alma humana em relação ao eterno já é, mesmo nas suas formas mais antigas e pouco usuais para nós, um passo na “direção certa”, se o objetivo for um maior conhecimento a respeito da ordem do ser. Conforme a crítica corrosiva em relação à verossimilhança destas formas menos acabadas de especulação teológica foi colocando os velhos paradigmas em crise, o conhecimento mais perfeito do ser pode chegar à humanidade, com a revelação de Deus ao povo hebreu.

A especulação filosófica iniciou também a nossa conhecida ciência, ou, como já se chegou a dizer por um bom tempo, a filosofia natural. Tal especulação foi, assim como a teológica, uma tentativa de apreender a realidade, fosse a realidade da phisis, fose aquela que está além da phisis (metafísica). A atividade do folósofo também possui uma tônica: descobrir aquilo que é perene em meio a um mundo repleto de efemeridades. Descobrir os padrões e ciclos, as regularidades, as coisas que podemos saber ao certo sobre a natureza, sobre a alma, e assim por diante. O objetivo da especulação filosófica, a orientação em direção à sabedoria, acaba por ser identico ao impulso inicial da especulação teológica.

Desse modo, a reflexão filosófica e a especulação teológica são, conforme a perspectiva aqui adotada, irmãs. Esta consciência tem um profundo impacto sobre a mente que a percebe, uma vez que acaba por alterar uma série de pressupostos feitos de péssima metafísica segundo os quais não poderíamos nos reaproximar de Deus sem antes relegar a razão para um distante segundo plano. O desvendamento da vida espirtual assim entendida acaba por revelar ao homem que antes de suspeitar a extensão toda da realidade (embora não seja possível conhecê-la por inteiro) ele era menos que homem, era uma espécie de deficiente espiritual.

Quanto ao abismo, ele não é exatamente intransponível, mas sua transposição é um mistério tão tremendo, obra da graça divina, que seria inútil um esforço aqui de tentar abraçar também esta questão.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Voegelin - Order and History vol I - Introdução

Este texto é uma tentativa de colocar em ordem no pensamento as princiapis idéias contidas no começo do primeiro volume de Order And History, a monumental obra de Eric Voegelin. Essa tentativa de organizar as idéias expostas por Voegelin é de minha inteira responsabilidade, mas se for bem sucedida mais partes da leitura que estou fazendo serão publicadas. Sigo a mesma ordem dos capítulos do livro, pois isto é na verdade uma leitura.

Introdução.

Para Voegelin, a realidade e abarcada em sua completude pelo ser (being). O ser tem uma estrutura quaternária: Deus, homem, mundo (suponho que seja a chamada ecumene, mas não estou bem certo para afirmar) e sociedade. Os quatro elementos formam mais propriamente o que Voegelin chama de “comunidade do ser”.

Onde exatamente entra o homem nessa comunidade? A comunidade do ser é parte de nossa experiência na medida em que somos participantes dela. Experimentamos a comunidade por dentro, existimos nela, mas ao mesmo tempo temos consciencia disso. (Esta condição tipicamente humana é, alias um dos mais interessantes aspectos da antropologia filosófica e deve estar em mente ao longo de qualquer estudo de filosofia). O conceito chave aqui é participação. Para explicá-lo convém a metáfora de que o homem e um ator, e não apenas um expectador na comunidade do ser (esta idéia me lembrou imediatamente de Viktor Frankl, que disse a mesmíssima coisa em “Man’s search for meaning”). A participação no ser é o que chamamos de existência (lembrem-se aí que ser e existir são coisas distintas. Essência tem um carater mais perene do que a simples existência. Não sei bem quando essa lição foi esquecida, mas estudiosos de Santo Agostinho, por exemplo, sempre tiveram ocasião de lembrar que nunca era perguntado como se faz hoje, se Deus existe. Perguntava-se se Deus é). Mais exatamente o homem é uma parte do ser que consegue experimentar a si próprio como parte do ser, ademais, podendo usar a linguagem, o homem consegue chamar esta consciêcia que experimenta de “homem”. Assim, no ato da evocação, do chamamento do nome “homem” o homem constitui a si mesmo enquanto tal, e no entanto sai sabendo tanto quanto sabia na hora em que entrou, ou seja: nada.

O fato de que o homem é vitima de uma brutal ignorância sobre si mesmo que é chamado por Voegelin de “ansiedade da existência”. Embora o homem esteja numa situação em que é impossível ter conhecimento total do ser (porque o homem é parte do mesmo ser), é possível saber algo acerca da ordem do ser. A fim de conhecer a ordem do ser, o homem recorre então aos símbolos como forma de se lançar para além do conhecido e do conhecível.

O processo de simbolizção possui alguns aspectos típicos que convém apontar.

1.
Predominância da experiência de participação. A comunidade do ser é experimentada como algo muito próximo dos homens. Existem elementos da natureza, como plantas, animais, rochas, etc, imbuídos de vontade e sentimentos. Em muitos casos, esses elementos podem ser homens ou duses transformados. Não se vê fronteira rígida entre homem, deuses e natureza, todas as coisas podem se tornar todas as coisas (note-se aqui como a diferenciação nessa fase é pouco desenvolvida, o ser se apresenta ao homem como um todo bastante compacto).

2. Preocupação com a permanência (lasting) e a decadência (passing). Esta preocupação vazada em termos genéricos é bem conhecida de nós; vida e morte, criação e destruição. É a consciência, nessa fase, de que algumas pessoas vivem mais que outras, que a sociedade sobrevive as pessoas, o mundo dura mais que as sociedades e os deuses estiveram presentes antes a criação do mundo e estarão presentes depois de seu fim. Aí já se pode enxergar uma hierarquia, um princípio de ordem entre os quatro componentes do ser.

Assim, na existência experimentamos a mortalidade, pois o ser dura enquanto nossa existência acaba. No ser, negativamente, experimentamos a imortalidade. A experiência do ser pode colocar o homem em harmonia com o ser. Harmonia, no entanto, é uma tradução pobre para attunement, mas Voegelin define o termo no próprio livro: “estado da existência em que esta tende para aquilo que é permanente no ser...” (p.4). Sentimos que pertencemos ao ser ao qual retornaremos. Assim, muito mais que o medo da morte, ao perceber a finitude da existência, tememos perder nossa breve participação no ser. Esta é a faceta mais profunda da “ansiedade da existência” que Voegelin retrata.

3. Criação de símbolos para explicar por analogia o desconhecido ou incognoscível para fazê-lo inteligível. A analogia pode acontecer de duas formas: comparando-se a sociedade ao cosmos (microcosmos) ou comparando a sociedade ao homem (macroanthropos).

Estas formas aparecem cronologicamente nessa ordem. A primeira surge naturalmente, a segunda surge após a desintegração do império simbolizado como cosmion (microcosmos). O modelo para a simbolização da próxima forma será então a alma humana ordenada, orientada na direção de Deus, e nela se vê o padrão pelo qual ordenar a sociedade. Tal transição é o que Toynbee chama de época de turbulência (time of troubles). Assim, diante da crise, a sociedade cosmológica acaba por alterar a sua simbolização do ser, da ordem visível, imanente do cosmos para a ordem invisível, transcendente, do ser, experimentada nos movimentos da alma humana.

4. O homem percebe que a sociedade é simbolizada por analogia, por causa da pluralidade de símbolos possíveis, nenhum deles, creio eu, exato em sua represntação, por força da relação mesma de analogia. Desse modo, os símbolos diversos convivem lado a lado e há ma tolerância grande entre as diversas sociedades e os símbolos que as representam.

O limite do simbolismo cosmológico é atingido em uma civilização quando a reflexão sobre os símbolos faz com que sejam julgados inadequados (falta-lhes verossimilhança, diria Xenóphanes). Os deuses começam a aparecer dentro de uma hierarquia, depois, vem a fase limite do sumodeísmo na teologia. Deuses, posteriormente, passam a ser vistos não mais como fortes ou fracos, mas como verdadeiros ou falsos (a Bíblia, no Velho Testamento, tem várias passagens que mostram essa visão da teologia). Esse movimento indica uma aproximação cada vez maior do monoteísmo.

O que toma lugar então é chamado por Voegelin de “ênfase de diferenciação na área da ignorância essencial” e “conseqüente distinção entre a realidade imanente cognoscível e a realidade transcendente incognoscível”. (p.9). São estes os avanços conseguidos na superação do modelo cosmológico.

Nesta fase de mudança, o homem deixa de procurar a ordem do ser na sociedade ou na natureza e começa a olhar para Deus em buscada ordem. É isto que se pode chamar de Conversão. Não é algo que é causado pelo homem ou pela sociedade, mas algo que acontece com o homem ou a sociedade. Este evento é chamado de “salto no ser” (leap in being), conceito importante neste e em outros estudos de Voegelin. Nossa participação “mundana” no ser, seu aspecto imanente ligado à existência e cercado pela finitude não acaba com a conversão e o salto no ser. A parceria (partnership) com Deus deve andar lado a lado com a participação na velha existência. O homem deve andar a partir daí consciente de ambas a velha e a nova verdade sobre o ser.

segunda-feira, setembro 10, 2007

Escrevendo demais

Uma notinha personalíssima: estou me sentindo um bocado amuado aqui em Dallas, tenho passado muito tempo sozinho, não ando bem. Sempre que isso acontece me dá um surto e começo a escrever. A isso se deve a recente atividade no Folhas Dispersas e no Prudence Regained. Muito tempo livre e muita coisa para tirar do sistema.

Taiguara e a Chicolatria



Estou por esses tempos pensando um pouco num fenômeno cultural brasileiro que sempre me entrigou, o qual se resume no nome Chico Buarque de Holanda.

O primeiro problema relacionado ao fenômeno Chico é que quem quer que venha a tecer alguma crítica contra o trabalho do sujeito já precisa começar pedindo mil desculpas, fazendo mesuras e arriscando ser massacrado assim mesmo. Não pedirei desculpas, por tanto, e a crítica começa já por aí. O que é que existe de tão religioso na adoração ao Chico Buarque que não permite que o sujeito seja alvo de qualquer comentário, crítica, sugestão, adendo, aparte, nem uma olhadela meio torta? O cúmulo dos cúmulos foram aqueles sujeitos que, por ocasião do flagrante de adulterio envolvendo o músico em plena praia, disseram algo do tipo "Para o Chico eu liberava minha mulher..." Vai ser lambe saco assim no inferno. Esses sujeitos mereciam no mínimo um pedido de divórcio por parte das suas respectivas senhoras. O cara que diz uma coisa dessa está claramente acometido de uma doença que meu velho pai diagnosticava em muita gente, com altíssimo índice de acerto: tesão no cu.

Aí tem a coisa de que o Chico entende o coração feminino como ninguém. Minha cara senhora, se o Chico entende bem o seu coração feminino a senhora deve trabalhar na zona, porque eu nunca vi um sujeito com uma produção tão grande sobre prostitutas quanto ele, com exceção talvez do Oscar Niemayer (por sinal, os dois são formados em arquitetura, comunistas declarados e unanimidades entre nossa esquerda chique). Se o seu coração foi desvendado pelo Chico Buarque, é por que talvez o grande antropólogo Nelson Rodrigues esteja certo sobre as mulheres, e talvez seja uma boa hora para a senhora mudar de profissão.

No mais, se você é comunista, petista, socialista, meio lerdo das idéias ou simplesmente mau-caráter mesmo, é bem provável que tenha uma profunda admiração pelo Chico Buarque por sua emblemática luta contra a Ditadura, seu jeito de estar ao lado do povo, e toda aquela lenga lenga. Surpreendentemente, até entre os brasileiros mais conservadores existe um bom número de pessoas que acha que o Chico se salva, ele é comunista mas é um grande artista, e por aí vai. Se você se encontra em algum desses casos, abra um pouco os horizontes musicais, porque desde que o dito Chico estudava na FAU, existia na Maria Antônia um cara do Direito Mack (sou franciscano, meus colegas me desculpem, mas esse mackenzista de salva) chamado Taiguara que, segundo consta, foi muito mais comunista do que o Chico (amigo do Prestes, militante descarado, mas sem babaquice nas declarações), muito mais perseguido do que o Chico (umas 100 músicas censuradas, albums recolhidos, foi o primeiro artista da MPB a lançar disco no exterior e não aqui por causa da ditadura) e o mais importante: foi muito mais talentoso do que o Chico jamais vai ser.

Lembrei muito do Taiguara ao pensar nessa "chicolatria" brasileira porque sempre que eu ameaçava reclamar do Chico Buarque alguém me dizia, meio espumanodo de raiva, se eu conhecia artista melhor. Conheço muitos. Para mim o melhor músico mais ou menos popular em atividade no Brasil é o Elomar Figueira de Melo, sem favor nenhum, mas se eu citasse alguem de outro estilo, época ou orientação ideológica iam falar que persigo o cara porque fazia samba (mas eu gosto de samba...), por que era comunista (mas não precisava ser tão cretino), ou algo assim, todavia, pela proximidade entre um e outro, o Taiguara é um exemplo perfeito para esfregar na cara dos chicólartas.

Taigura escrevia músicas com um lirismo absoluto, uma sensibilidade imensa, um profundo otimismo em boa parte das canções e uma capacidade para apreender o belo, o bom, tanto na composição da música quanto na poesia. Já o Chico Buarque sempre teve um faro para o mesquinho, o baixo, o sujo. Ele pegava o popularesco, o cortiço, e dava uma roupagem poética para aquilo. Essa era sua poesia boa parte das vezes. Taiguara tinha, ao que me parece, mais alma, estava orientado (a despeito de sua ideologia) para coisas mais elevadas.

Ironicamente, para mim, Taiguara gravou Chico Buarque, não sei em quantas, mas ao menos em uma ocasião. Foi uma coisa boa, porque ao contrário do Chico, Taiguara possuía uma voz extraordinária. Nem sei bem como descrever uma voz como a dele; talvez descreva como leve, límpida, clara e bem projetada, como um arauto anunciando uma boa notícia, um tanto risonha em certas ocasiões, e bem lírica, sussurrada e mansa em outras. O fato é que como intérprete e instrumentista, também, dez a zero para Taiguara.

Diante desse exemplo paradigmático, sou obrigado a concordar com o Olavo de Carvalho quando diz que o brasileiro sempre escolhe para admirar e idolatrar aquilo que é de pior qualidade. Isto posto, há que se considerar que o aspecto ideológico da música não se salva em nenhum caso (embora eu ouça tanto o Chico Buarque quanto o Taiguara - agora já se sabe qual deles prefiro - e goste da música deles, afinal cresci ouvindo e continuo gostando). Posso inclusive dizer que o Cavaleiro da Esperança é uma música espetacular, tanto a melodia quanto o ritmo mostram a criatividade de Taiguara de forma exemplar, mas não tem levar a sério a louvação da figura mitologizada do Prestes. Do mesmo modo, quando Chico Buarque faz um fado como Tanto Mar (sou bisneto de português, fã da Dulce Pontes, da Amália Rodrigues...) acho que a música está super bem arranjada, a música realmente é cantável sem ser exagerada, está bonita, mas ficar homenagiando a Revolução dos Cravos, o golpe de misericórdia no Império Português, tornando o país uma aberração em plena Europa ocidental, é demais para quem não é um socialista irrecuperável como um Saramago.

Revisionismo historico já. No Brasil isso precisa ser feito em relação a nossa história recente, pois ela está sendo toda escrita pela esquerda champanhe (que é chique ou tenta - com variados graus de sucesso - fingir que é) representada pelo PT e petistas. Esta é minha pequena (quase marginal) contribuição.

quarta-feira, agosto 22, 2007

Sobre o casamento

Faz uns poucos anos eu escrevi neste espaço sobre a sensação nova que era estar namorando. Desde entao passou muita água debaixo da ponte, me desencantei, mas acabei, pouco depois, por conhecer aquela que viria a prometer ser minha companheira pela aventura da vida.

Por conta disso vim parar em Dallas, como bem sabem meus amigos, e agora somos só os dois, como nos versos de Milton que tanto me tocaram quando li pela primeira vez:


"The world was all before them, where to choose

Their place of rest, and Providence their guide.

They, hand in hand, with wandering steps and slow,

Through Eden took their solitary way."

Eu achava que sabia o significado deles. Agora descobri qua não sabia nada. Os versos contam a queda do homem e a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Com esta expulsão começa o relato bíblico da perigrinação do ser humano pelo mundo que "estava todo diante deles". O povo de Deus é um povo de peregrinos, e viver nesta terra, longe do Édem ou longe de Deus é peregrinar.

No entanto, Deus não nos colocou sozinhos nesta peregrinação. Adão e Eva tinham um no outro um companheiro de viagem que lhes deveria sustentar e cuidar. Mais do que isso, dividiam a vida um com o outro, conforme o mandamento divino.

Assim fica estabelecida a beleza e o caráter divino desta solidão a dois, quando, deixando o seio familiar, vamos empreender algo completamente novo, mas tão antigo quanto o primeiro homem e a primeira mulher.

Esta união é algo difícil de descrever. Precisa ser vivida. Somente ao entrar na dinâmica da entrega total ao outro, uma só carne, um só amor, é que podemos de fato compreender o casamento. Existem pessoas casadas ha anos que jamais compreenderam esta comunhão. Se esse laço for verdadeiro, será forte para que duas pessoas, "de mãos dadas, com passos vacilantes e devagar" enfrentem e reinem sobre o mundo todo diante de si.

É no casamento também que encontrei um lugar de descanso. Com a benção de Deus, por sua providência, pode o casal achar um no outro, apesar da natureza humana tão terrível, encontrar paz no colo da pessoa amada. Quando experimento esse laço vejo que nada pode ser mais importante preservar do que a união que coloca a nova família diante de Deus.

A experiência do casamento acontece no dia a dia, nos minutos em que esperamos pela amada, na hora de nos sentarmos à mesa e juntos contarmos como foi o dia, nas caminhadas, nos sorriros disfarçados que só nós sabemos o que significam. Eu costumava escrever muito sobre o amor em abstrato, construindo um amor em minha mente que por sua constituição assaz etérea não poderia achar meios de tocar o chão sem se desfazer. Creio que hoje, casado, encontrei algo ainda mais sublime e mais alto.

Quando encontrei uma mulher da qual percebi que não conseguia ficar por um dia sequer distante, quando percebi que ela me seria fiel e verdadeira sempre. Quando vi que não me escondia nada, e que eu já não tinha nada a esconder dela, eu a beijei, tomei sua mão, e vagarosamente iniciamos nossa peregrinação pelo desconhecido.

sexta-feira, junho 01, 2007

Uma nota (nem tão) curta sobre os Universais

O bispo Edir Macedo, como se sabe, controla (para não dizer que é o dono) a rede Record de televisão. Nominalmente a TV é propriedade de sua Igreja Universal do Reino de Deus. Esta mesma TV começou agora uma campanha a favor (aberta e descaradamente) do aborto. Fiquei francamente enjoado. Por outro lado, fica mais que comprovado que o supra mencionado bispo está a serviço mesmo é de Satanás, para além de qualquer dúvida.

Espero que o meio evangélico tenha a decência, ou melhor, higiene suficiente para riscar a Igreja Universal do mapa evangélico e assumir de uma vez que aquilo é uma seita com um guru facilmente identificável (o Sr. Macedo) e de modo a colocá-los num patamar ainda mais baixo do que adventistas e testemunhas de Jeová, em termos teológicos. Além de todos os erros teológicos graves, o abortismo é a gota. Estou certo de que essa gente não é honesta para com Deus e para com seus fiéis, mas ao contrário dos fiéis facilmente enganados, não posso crer que Deus será indulgente para com o aviltamento de Seu Nome.

sexta-feira, maio 25, 2007

300


Hoje, depois de muito tempo passando vontade, consegui assistir o filme 300, baseado na história em quadrinhos (que eu já houvera lido alguns anos atrás) de Frank Miller, artista realmente genial (sou daqueles que leva a nona arte tão a sério quanto todas as outras, e meu gosto por HQs será o mais próximo que jamais chegarei de gostar de qualquer obra de artes plásticas ou visuais de qualquer tipo) e fiquei impressionado com a magnitude da obra, a capacidade formidável que os realizadores tiveram para captar a tragédia e a glória do episódio. Senti-me grato por ter podido desfrutar de um verdadeiro épico moderno.

No filme, o problema que move o Rei Leônidas até seu destino glorioso (a morte, no caso) é a aproximação dos milhares e milhares de súditos-escravos do Imperador-deus dos persas, Xerxes. O que o impediu de resistir completamente às investidas do imperador foi a traição de alguns de seus próprios súditos, os quais buscaram antes o próprio bem, e não aquele de seu povo. Leônidas não hesitou antes de sacrificar sua vida a fim de proteger aqueles que o veriam morto antes de lutar pela própria liberdade. Provou, assim, ser acima de tudo um homem, superior aos animais, menos-que-homens que o traíram. No filme, a imagem é brutal e direta, a figura do traidor Ephialtes é monstruosa. Leônidas não mata o monstro, mas tenta entendê-lo e ajudá-lo, no que não é bem sucedido. Da mesma maneira o Rei houvera tentado ir à guerra a fim de salvar seu povo e foi impedido pelos sacerdotes e anciãos. A diferença entre Leônidas e todos eles é como aquela apontada por Platão no Górgias entre o filósofo e o sofista, ou o político esclarecido Calcicles, é uma diferença existencial. Aliás, estou me valendo aqui da análise feita por Eric Voegelin acerca do diálogo, e de acordo com ela o paralelo entre o filme e o diálogo platônico é impressionante.

Fica claro aqui que o rei de Esparta e o filósofo Sócrates partilham o mesmo problema. Lutam por um modo de vida só tolerável para homens de verdade, modo da honra para um, da justiça para o outro, direcionados por sua formação e maturidade para uma verdade existencial mais elevada do que as sociedades nas quais viviam (com as honrosas exceções de sempre, seus respectivos amigos e discípulos).

O paralelismo sugere que situações como essas possam aparecer mais de uma vez na vida das sociedades. Hoje, eis a razão principal de meu espanto em relação ao filme 300, perece-me que o mesmo problema se coloca. O oriente tenta subjugar o ocidente, destruir a liberdade que tão caro nos custou, substituí-la por sua tirania, fazendo-nos todos escravos. Para isso contam com os traidores que em nome da tolerância, do pluralismo, da “liberal guilt”, de acusações falsas e ignominiosas contra o ocidente, procuram tirar de cada um a própria vontade de resistir, assim como o político traidor que entregou os trezentos espartanos nas mãos de Xerxes por negar-lhes mais apoio das tropas de Esparta. A guerra do Iraque, a luta dos conservadores europeus contra a verdadeira invasão islâmica que tem assolado a Europa por causa de uma política de imigração irresponsável; estas batalhas estão sendo travadas dia a dia, e por meio delas ainda gozamos, aqui no Brasil e no resto do ocidente livre, de uma tranqüilidade que a muitos parece um sonho distante.

A esquerda e seus poderosos, seja nos governos, na imprensa que ela dominou assim como nas universidades, são os animais, os monstros que nos veriam escravizados de joelhos, de uma forma ou de outra (diante do islã radical ou do poder do partido comunista – ou seu equivalente politicamente correto), por nutrir um ódio comum aos valores, às tradições, às glórias, à coragem e à cultura dos homens do ocidente. Toda vez que nossos governos, parlamentares, jornalistas, intelectuais (já não sei bem se o termo é muito bom, a intelectualidade atual faz tudo menos levar a atividade intelectual a sério), procuram nos voltar contra aqueles que sozinhos, contra tudo e contra todos, procuram defender nosso mundo da destruição e do esquecimento, eles revelam sua face monstruosa, demonstram ser o tipo de homens que gerações mais corajosas e mais atentas do que a nossa teriam jurado destruir – e de fato entregado as vidas para fazê-lo.
Neste momento aparece o filme 300, e se soubermos tirar dele as lições necessárias, não precisaremos assistir ao mesmo daqui a alguns anos com uma nostalgia impotente daquela coragem, daquele desinteresse pela própria vida diante da necessidade de lutar defendendo um mundo de ordem e liberdade para as gerações futuras.

quinta-feira, maio 17, 2007

Comunistas


Não sei quem é o autor desta preciosidade, mas o sujeito é bem eloquente. Quaisquer dúvidas, encontrei a charge nessa página aqui: http://www.grupos.com.br/group/indymedia/

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Breve consideração sobre razão e fé.



Juan Donoso Cortés escreveu, em seu “Discurso académico sobre la Bíblia”, um trecho que considero belíssimo. Ele foi muito feliz ao proferir estas palavras e eu certamente fico contente ao repeti-las aqui:

“Hay un libro, tesoro de un pueblo que es hoy fábula y ludibrio de la tierra, y que fue en tiempos pasados estrella del Oriente, adonde han ido a beber su divina inspiración todos los grandes poetas de las regiones occidentales del mundo y en el cual han aprendido el secreto de levantar los corazones y de arrebatar las almas con sobrehumanas y misteriosas armonías. Ese libro es la Biblia, el libro por excelencia.”

O testemunho daqueles que foram inspirados por Deus e legaram ao mundo uma palavra tão excelente e tão proveitosa, cuja mensagem contém o próprio segredo da vida eterna, segredo este que é anunciado, estranha ironia, se nos apresenta de maneira por vezes misteriosa, por outras bem clara. Podemos ler “o livro por excelência” inúmeras vezes, e sempre estaremos diante de algo completamente novo.

Em termos experienciais, creio que foi Eric Voegelin quem teve o insight fundamental a respeito da Bíblia, ao enquadrá-la na categoria de registro, em termos humanos (vale dizer: com símbolos humanos), da experiência da dimensão espiritual da realidade, conferindo ao cristianismo (tradição hebréia aliada à sabedoria grega que permeava a cultura no contexto neotestamentário) a posição de primazia entre todos os credos, por ter alcançado a maior diferenciação dos símbolos que representam a verdade existencial experimentada (Evangelho e Cultura, trad. Mendo Castro Henriques).

A experiência que levou à composição dos livros da Bíblia, embora tenha ocorrido a diversos homens ao longo de muitos anos, a força da revelação e inspiração divinas acabaram por inspirar centenas de gerações ao longo de muitos anos, na política, nas artes, somos constantemente inspirados e lembrados do que é a verdadeira grandeza de Deus, e somos encorajados a imitá-la.

Embora este processo envolva a experiência, e esta tenha um poder muito grande sobre nossa maneira de enxergar a religião, não é, nem de longe, algo suficiente. Voegelin fala em duas etapas, a experiência e a simbolização. As simbolizações acontecem na história, isto é importante, especialmente para Voegelin, de modo que existem entre elas graus variados de diferenciação, como já mencionamos. Conforme uma visão mais adequada da realidade como um todo – ou seja, considerando a dimensão do espírito no todo da realidade. Dentro desta perspectiva, da simbolização e da diferenciação, a filosofia, o uso da razão, não é uma atividade superior à simbolização religiosa, como querem crer muitos filósofos desde o iluminismo até (e principalmente) hoje. A revelação lança bases por demais sólidas para não serem percebidas como essenciais para a vida e para o pensamento humano. A história não pode ser usada para justificar ou tentar compreender o processo pelo qual a Bíblia chegou a produzir tamanhas maravilhas dentro das sociedades e da cultura ocidental, mas é antes uma forma de compreender a ação soberana de Deus, o qual, justamente por meio de sua revelação, nos presenteou com a própria noção de história tal como a temos hoje!

Esta perspectiva constitui um argumento de peso para qualquer projeto de cosmovisão cristã, uma vez que reconhece que, ainda que a revelação e a sabedoria humana não sejam intercambiáveis, esta tem muito a aprender com aquela, especialmente se cremos que a palavra de Deus é, de fato o princípio da sabedoria. Corretamente nota Donoso Cortés no Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo: “La teología, por lo mismo que es la ciencia de Dios, es el océano que contiene y abarca todas las ciencias, así como Dios es el océano que contiene y abarca todas las cosas.” A partir daí, posso ver que de certo modo a pergunta fundamental sobre a relação entre religião (cristã) e filosofia vem sendo feita de forma incorreta. Não deveríamos perguntar se a filosofia pode ajudar a interpretar e entender a Bíblia (embora eu acredite que pode contribuir na interpretação bíblica, jamais como padrão externo, mas como um meio de aprimorar a capacidade de raciocínio do intérprete) mas sim como a Bíblia pode lançar luz sobre o caminho da filosofia, orientando-a pela senda da sabedoria.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Sobre o violão, mas nem tanto.


Ultimamente tenho me voltado para o universo do violão clássico mais uma vez. Não que tenha me afastado tanto, mas acabei ficando muito tempo sem tocar por conta de um pequeno acidente pelo qual passou o instrumento e minha concomitante incapacidade de financiar sua reforma. Isso agora pertence ao passado e estamos novamente juntos, o violão e eu, de modo a enxer a casa novamente de ruídos que tento fazer passar por música.

Não estou sendo duro comigo mesmo. Sou um bom apreciador de música, modéstia à parte, e por isso não posso escapar de duas descobertas: a primeira é que eu era um violonista mediano, mas tocava corretamente; a segunda é que agora, enferrujado, não fui capaz de tocar uma única peça.

A tragédia me atingiu de forma um pouco dura, mas não sem resistência da minha parte. Pus-me a estudar exercícios de técnica e vou voltar a exercitar a leitura em breve, e é aí que eu queria chegar...

É deprimente a sensação de ser anlfabeto diante da partitura, ou de ler com grande dificuldade
, como estou fazendo agora. Olhar os simbolos e ter apenas uma vaga lembrança do que significam, incapaz de corpo aos caracteres, corpo sonoro, concretizando as idéias. Nada mais trágico, acima de tudo, do que me ver incapaz de concretizar as idéias que leio ou que de um modo ou de outro concebo.

Ora, talvez pareça bobagem da minha parte, mas esta forma de confinar minha existência musical por esta deficiência (espero que temporária) causa uma angústia esquisita, misto de impaciência e impotência patética. Fico a pensar sobre o problema. Será que antes me preocupava não poder ler as tais notas? A faculdade que tinha foi adquirida já um pouco velho (em comparação, injusta para mim, é verdade, com instrumentistas de nível bom), e não me parece que tenha tido qualquer problema em viver sem ela. Mas não me veio sem esforço. Os momentos debruçados sobre as partituras, violão nas mãos ou em frente ao piano (mas isso é outra história) me sairam caros, especialmente depois que vi meus sonhos musicais darem lugar à promessa de uma carreira jurídica, apesar do prazer que proporcionaram.

Assim, minha tristeza se dá por conta da perda, não da ignorância. Às vezes me incomodava ver que muitas pessoas passavam muito bem suas vidas sem pensar muito a respeito de nada menos imediato. É claro que me dirão que pensar todos pensamos, que sou intelectualista, mas então qual é o problema? Não creio que seja o único ser humano incomodado pela ignorância, própria ou alheia. Aliás, acho que não tenho mais tolerância para comigo mesmo do que demonstro para com os outros. Porém, existe algo que me diz que a ignorância é ruim e a sabedoria é excelente (a Bíblia certamente o diz, o que não tem exata relação com a intuição que tenho a respeito).

Bem, a busca por conhecimento não parece ser algo com que todos concordam. A grande maioria das pessoas, se formos ver a fundo, preferirá a ignorância com felicidade do que a sabedoria sem ela, mas a idéia de viver no mundo sem pensar sobre ele me parece uma atitude tão genuinamente bovina... Atitude que explica muita coisa, como a tendência do vulgo para o pior, mas cuja raiz não se explica com facilidade.

A presente digressão era a intenção nesse post. O meu incômodo não é o de um sábio, advirto. É de alguém que luta para vencer a própria ignorância. Mas então por que sinto falta da sabedoria que não tenho, se nunca senti falta de ler minhas partituras quando não sabia? O que gera tamanha curiosidade em relação ao mundo e às pessoas, se no fundo sou mesmo um pouco averso ao contato social e com a natureza?

Entrei com algumas dúvidas e saí com mais um punhado delas. Então por que o exercício foi tão satisfatório?

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Cristianismo Radical

Quando me encontro debatendo religião, ou algum assunto relacionado, com alguém (assuntos relacionados é uma categoria bastante ampla se você adota uma cosmovisão cristã, pois a religião acaba permeando praticamente tudo o que você diz – ou antes, pensa), acabo me deparando com uma exclamação sincera e muito arguta que foi melhor formulada por um querido amigo, semana passada: “Tiago, você é muito dogmático!”. Bem, pensei um bocado a respeito e dei-me conta de que esse é justamente o ponto essencial do problema da postura das pessoas em relação à religião. Explico por que em seguida.

O primeiro dado que é importante perceber (sim, perceber um dado, não de forma rigorosa, mas sentindo através do contato social com as pessoas, esse tipo de experiência é possível para quem quer que se disponha a fazê-la) é o crescente afluxo de pessoas que busca o desenvolvimento de alguma espécie de espiritualidade. Há muitas no mercado. Há a cientologia, umas tantas seitas pseudo-evangélicas, rituais africanos, wicca, espiritismo, logosofia... e isso é só o que posso recordar no momento, porém o número é imenso e as opções crescem a cada dia. Até as empresas chamam palestrantes motivacionais para falar a respeito do tema (conforme nos lembrou o Pastor Leandro Peixoto duas semanas atrás) e a venda de livros a respeito de vidas passadas é recorde no Brasil, Paulo Coelho continua fazendo sucesso no mundo inteiro e isso não é tudo. Ann Coulter observa em seu último livro (o impagável Godless, e não importa que pensem que ela exagera no tom, acerta na mosca no conteúdo) que o secularismo esquerdista assume cada vez mais o caráter de uma religião, talvez a mais poderosa opositora do cristianismo em muito tempo.

Esta profusão de experiências de caráter espiritual demonstra que estamos buscando uma espiritualidade. Francis Schaeffer dizia que essa busca se deve ao fato de que fomos criados para andar com Deus, e que ao nos afastarmos, não nos damos conta, mas procuramos compensar a Sua falta. Sinto-me irresistivelmente tentado a concordar com ele. Porém, em algum lugar, erramos o alvo. Estamos diante de uma situação em que o politicamente correto e mais democrático modo de lidar ocom a religião é declarar que todas as manifestações auto-declaradas espirituais são iguais entre si, e a bem da verdade, estaríamos inclusive autorizados a criar nossa própria versão de espiritualidade, seja por uma série de circunstâncias que determinaram nossa formação, seja por algum tipo de raciocínio (o que pode afetar bastante o resultado, dependendo da capacidade de cada uma para tal atividade).

Não é de bom tom afirmar que há uma verdade. O problema é que isso acaba desembocando no discurso de que existem várias verdades, o que representa uma desvirtuação aberrante do próprio conceito de verdade (e por mais que Bruno Latour e Bárbara Herrnstein Smith façam malabarismos filosóficos para defender uma verdade mais abrangente ou inclusiva, honestamente, não convencem qualquer praticante de um pensamento filosófico minimamente rigoroso). Diante desta máxima do politicamente correto, por mais infundada que seja, estamos nos tornando cada vez mais reféns da opinião.

A opinião é uma das piores coisas que já ocorreu ao gênero humano cultivar, pois tendemos a acreditar que o mero fato de ter uma opinião, quer seja ela formada em cuca própria ou tomada de empréstimo, tendemos a nos apegar a ela como se fosse um filho querido, se bem que na maioria das vezes, filhos um tanto feiosos que as pessoas não costumam gestar por tempo suficiente. Diante disso, uma pessoa média (termo que uso para substituir a machista – e jurídica – expressão bonus pater familias, a fim de não ofender ainda mais a audiência com meu conservadorismo retrógrado...) teria direito a uma opinião a respeito de como conduzir sua espiritualidade de modo a produzir uma noção tão única quanto seu próprio... nariz (teria usado outro termo, mas não ficaria bem para um “born again christian” o emprego de tal calão). Esta singularidade de opinião, embora seja alardeada como uma grande conquista para a independência de pensamento, acaba tendo o efeito contrário, pois acaba levando milhares de pessoas a acreditarem em certas coisas bem parecidas - normalmente crenças dotadas de algum fundo ético socialmente aceitável ou então portadoras de uma estética peculiar nos procedimentos de seus seguidores que suscite algum interesse - afinal o efeito do comportamento de manada é poderoso e quanto mais permissiva, vaga e, sejamos honestos, vulgar (comum) a espiritualidade oferecida, mais popular, acessível e querida ela acaba se tornando (a cientologia é um exemplo perfeito de despropósito pseudo-religioso. E quem também não se lembra dos diversos gurus dos anos setenta?).

Embora grande parte destas opiniões e formas de “espiritualidade” não envolvam Xemu ou a Confederação Galáctica (suponho que tenham visto o link acima), existe sempre uma chance de que coisas deste tipo apareçam. Já o ateísmo ferrenho de muitas pessoas, escondido por trás de uma fachada “liberal”, acaba por servir de canal, inclusive, para um ódio anti-cristão. O cristianismo tem sido bastante combatido, isso não é segredo para ninguém, e é interessante notar que embora exista uma hostilidade natural do cristão com relação ao pecado (o que a maioria das pessoas considera práticas normais de vida como sexo inconseqüente, o uso patológico da mentira, homossexualismo, alcoolismo como requisito para diversão...) ela nem se compara com a fúria que um não cristão emprega ao descobrir que certas práticas tão queridas para ele são tidas como abomináveis por alguém. Ao ser confrontada com a realidade do pecado por meio da pregação do cristão, infelizmente a reação mais comum de uma pessoa média é dizer que não acha que seja o que faz é ruim porque ele acredita “que não tem nada de mais, que existe uma energia assim... uma força maior e coisa e tal, e que o cristianismo é limitado demais...” ou então que “não existe essa coisa de Deus e de Bíblia, e isso é coisa de pastor para explorar o povo” (veja como a revelação milenar inscrita na bíblia sucumbe diante da opinião mal cozida na cabeça do sujeito) E diante da eventual insistência do cristão em defender aquilo no que crê, o interpelado logo torce para que voltem o Colosseum e seus leões.

Voltando ao problema pessoal que me pôs a escrever: por que me chamar de dogmático? Bem, na verdade creio que é porque eu sou, de certo modo, dogmático. Meu amigo me conhece bem e estava certíssimo. Mas sustento que tenho toda razão para ser dogmático, afinal, enquanto todos ao meu redor tem por uso começar as fases com “Eu acho...”, eu prefiro começar com “A Bíblia diz que...”. Essa diferença é essencial, pois é o que distingue o cristão e é o que empresta uma autoridade tremenda à sua opinião, desde que devidamente fundada na Bíblia bem interpretada. A livre consulta à Escritura é o que me ajuda a não ser, a rigor, dogmático; porém, hoje, o simples fato de seguir a Bíblia faz de mim um dogmático aos olhos do mundo. O fato de sustentar a verdade do evangelho, e sustentar – implicitamente – que existe tal coisa como a verdade causa todo o tipo de arrepios porque faço referência a um padrão fixo de valores e tenho uma visão de mundo determinada por uma verdade eterna.

O cristianismo possui implicações éticas, mas também epistemológicas, científicas e psicológicas que são absolutamente chocantes para o mundo hoje tanto quanto o foram para aqueles que discutiram religião com os primeiros cristãos. É importante procurar entender que espiritualidade é coisa séria, não é algo que você pode adequar às circunstâncias ou trocar como quem muda uma peça de roupa íntima. É um compromisso que, levado a todas as suas conseqüências, muda a própria maneira como o mundo nos afeta – as relações, os fatos, as notícias – e somos de fato transformados. Não sou grande fã do perspectivismo, mas nesse caso a idéia se aplica bem, é como se já não víssemos o mesmo filme que as outras pessoas. Somos radicalmente alienados do nosso meio, transitamos por ele como estranhos, e sofremos com um certo estranhamento do mundo também. Este aspecto experiencial decorre dos pressupostos que descrevi acima.

Minha palavra para quem passa pelo que eu passo é que fique tranqüilo e aproveite. Se estão estranhando praticamente tudo que tem saído da sua boca ultimamente e suas participações em debates “espirituais” começam com citações bíblicas, esse radicalismo é o ponto ótimo de sua existência cristã. Aqueles que estranham o que digo deverão saber que o único meio de participar da compreensão da realidade do Espírito (de Deus) é assumir essa perspectiva nova e abandonar para sempre seu velho modo de pensar, seja ele qual for, por algo mais perfeito. Se soei um pouco dogmático (ou até pior), consegui o efeito desejado.

terça-feira, janeiro 16, 2007

O Amor em Vista

Faz muito tempo que não me deixava encantar por poesia dessa maneira, de modo que faço questão de publicar esta aqui. É importante dividir estas coisas, que mais é multiplicá-las do que dividí-las, afinal idéias não se gastam assim tão fácil só porque as pensamos. O autor eu não conhecia, cheguei a ela por acaso, mas vejam se não é uma beleza...



(fonte: http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v282.txt)



O AMOR EM VISITA



Herberto Helder



Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.

Seus ombros beijarei, a pedra pequena

do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade

de dois seios, com o peso lúbrico e triste

da boca. Seus ombros beijarei.



Cantar? Longamente cantar,

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave

o atravessar trespassada por um grito marítimo

e o pão for invadido pelas ondas,

seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes

ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento

de alegria e de impudor.



Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água.

Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;

e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,

os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.

- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,

mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria.



Dai-me uma mulher tão nova como a resina

e o cheiro da terra.

Com uma flecha em meu flanco, cantarei.



E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,

cantarei seu sorriso ardendo,

suas mamas de pura substância,

a curva quente dos cabelos.

Beberei sua boca, para depois cantar a morte

e a alegria da morte.



Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro

pescoço de planta,

onde uma chama comece a florir o espírito.

À tona da sua face se moverão as águas,

dentro da sua face estará a pedra da noite.

- Então cantarei a exaltante alegria da morte.



Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela

despenhada de sua órbita viva.



- Porém, tu sempre me incendeias.

Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite

imagem pungente

com seu deus esmagado e ascendido.

- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.



Entontece meu hálito com a sombra,

tua boca penetra a minha voz como a espada

se perde no arco.

E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua

estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo

se desfibra - invento para ti a música, a loucura

e o mar.



Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,

a inspiração.

E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.

Vou para ti com a beleza oculta,

o corpo iluminado pelas luzes longas.

Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos

transfiguram-se, tuas mãos descobrem

a sombra da minha face. Agarro tua cabeça

áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou

aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -

eu sou a beleza.

Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem

teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.



Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti

que me vem o fogo.

Não há gesto ou verdade onde não dormissem

tua noite e loucura,

não há vindima ou água

em que não estivesses pousando o silêncio criador.

Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos

originais.

Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra

a carne transcendente. E em ti

principiam o mar e o mundo.



Minha memória perde em sua espuma

o sinal e a vinha.

Plantas, bichos, águas cresceram como religião

sobre a vida - e eu nisso demorei

meu frágil instante. Porém

teu silêncio de fogo e leite repõe

a força maternal, e tudo circula entre teu sopro

e teu amor. As coisas nascem de ti

como as luas nascem dos campos fecundos,

os instantes começam da tua oferenda

como as guitarras tiram seu início da música nocturna.



Mais inocente que as árvores, mais vasta

que a pedra e a morte,

a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,

tinge a aurora pobre,

insiste de violência a imobilidade aquática.

E os astros quebram-se em luz sobre

as casas, a cidade arrebata-se,

os bichos erguem seus olhos dementes,

arde a madeira - para que tudo cante

pelo teu poder fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,

eu sei quanto és o íntimo pudor

e a água inicial de outros sentidos.



Começa o tempo onde a mulher começa,

é sua carne que do minuto obscuro e morto

se devolve à luz.

Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras

com uma imagem.

Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito

de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade

uma ideia de pedra e de brancura.

És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,

que te alimentas de desejos puros.

E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,

a sombra canta baixo.



Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,

onde a beleza que transportas como um peso árduo

se quebra em glória junto ao meu flanco

martirizado e vivo.

- Para consagração da noite erguerei um violino,

beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada

darei minha voz confundida com a tua.



Oh teoria de instintos, dom de inocência,

taça para beber junto à perturbada intimidade

em que me acolhes.



Começa o tempo na insuportável ternura

com que te adivinho, o tempo onde

a vária dor envolve o barro e a estrela, onde

o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida

ingénua e cara, o que pressente o coração

engasta seu contorno de lume ao longe.

Bom será o tempo, bom será o espírito,

boa será nossa carne presa e morosa.

- Começa o tempo onde se une a vida

à nossa vida breve.



Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna

salina, imagem fechada em sua força e pungência.

E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado

em torno das violas, a morte que não beijo,

a erva incendiada que se derrama na íntima noite

- o que se perde de ti, minha voz o renova

num estilo de prata viva.



Quando o fruto empolga um instante a eternidade

inteira, eu estou no fruto como sol

e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada

matriz de sumo e vivo gosto.

- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices

das nuvens florescem, a resina tinge

a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.

E estás em mim como a flor na ideia

e o livro no espaço triste.



Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento

na cevada pura, de ti viriam cheias

minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses

em minha espuma,

que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?

- No entanto és tu que te moverás na matéria

da minha boca, e serás uma árvore

dormindo e acordando onde existe o meu sangue.



Beijar teus olhos será morrer pela esperança.

Ver no aro de fogo de uma entrega

tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus

será criar-te para luz dos meus pulsos e instante

do meu perpétuo instante.

- Eu devo rasgar minha face para que a tua face

se encha de um minuto sobrenatural,

devo murmurar cada coisa do mundo

até que sejas o incêndio da minha voz.



As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso

jovem da carne aspiram longamente

a nossa vida. As sombras que rodeiam

o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto

seu bárbaro fulgor, o rosto divino

impresso no lodo, a casa morta, a montanha

inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo

- aspiram longamente a nossa vida.



Por isso é que estamos morrendo na boca

um do outro. Por isso é que

nos desfazemos no arco do verão, no pensamento

da brisa, no sorriso, no peixe,

no cubo, no linho, no mosto aberto

- no amor mais terrível do que a vida.



Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz

o perfume da tua noite.

Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua

e branca das mulheres. Correm em mim o lacre

e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca

ao círculo de meu ardente pensamento.

Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam

sobre o teu sorriso imenso.

Em cada espasmo eu morrerei contigo.



E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente

das urzes, um silêncio, uma palavra;

traz da montanha um pássaro de resina, uma lua

vermelha.

Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,

casa de madeira do planalto,

rios imaginados,

espadas, danças, superstições, cânticos, coisas

maravilhosas da noite. Ó meu amor,

em cada espasmo eu morrerei contigo.



De meu recente coração a vida inteira sobe,

o povo renasce,

o tempo ganha a alma. Meu desejo devora

a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma

de crepúsculos e crateras.



Ó pensada corola de linho, mulher que a fome

encanta pela noite equilibrada, imponderável -

em cada espasmo eu morrerei contigo.



E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se

entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro

da tua entrega. Bichos inclinam-se

para dentro do sono, levantam-se rosas respirando

contra o ar. Tua voz canta

o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com

o lento desejo do teu corpo.

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo

eu morrerei contigo.






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