segunda-feira, janeiro 29, 2007

Cristianismo Radical

Quando me encontro debatendo religião, ou algum assunto relacionado, com alguém (assuntos relacionados é uma categoria bastante ampla se você adota uma cosmovisão cristã, pois a religião acaba permeando praticamente tudo o que você diz – ou antes, pensa), acabo me deparando com uma exclamação sincera e muito arguta que foi melhor formulada por um querido amigo, semana passada: “Tiago, você é muito dogmático!”. Bem, pensei um bocado a respeito e dei-me conta de que esse é justamente o ponto essencial do problema da postura das pessoas em relação à religião. Explico por que em seguida.

O primeiro dado que é importante perceber (sim, perceber um dado, não de forma rigorosa, mas sentindo através do contato social com as pessoas, esse tipo de experiência é possível para quem quer que se disponha a fazê-la) é o crescente afluxo de pessoas que busca o desenvolvimento de alguma espécie de espiritualidade. Há muitas no mercado. Há a cientologia, umas tantas seitas pseudo-evangélicas, rituais africanos, wicca, espiritismo, logosofia... e isso é só o que posso recordar no momento, porém o número é imenso e as opções crescem a cada dia. Até as empresas chamam palestrantes motivacionais para falar a respeito do tema (conforme nos lembrou o Pastor Leandro Peixoto duas semanas atrás) e a venda de livros a respeito de vidas passadas é recorde no Brasil, Paulo Coelho continua fazendo sucesso no mundo inteiro e isso não é tudo. Ann Coulter observa em seu último livro (o impagável Godless, e não importa que pensem que ela exagera no tom, acerta na mosca no conteúdo) que o secularismo esquerdista assume cada vez mais o caráter de uma religião, talvez a mais poderosa opositora do cristianismo em muito tempo.

Esta profusão de experiências de caráter espiritual demonstra que estamos buscando uma espiritualidade. Francis Schaeffer dizia que essa busca se deve ao fato de que fomos criados para andar com Deus, e que ao nos afastarmos, não nos damos conta, mas procuramos compensar a Sua falta. Sinto-me irresistivelmente tentado a concordar com ele. Porém, em algum lugar, erramos o alvo. Estamos diante de uma situação em que o politicamente correto e mais democrático modo de lidar ocom a religião é declarar que todas as manifestações auto-declaradas espirituais são iguais entre si, e a bem da verdade, estaríamos inclusive autorizados a criar nossa própria versão de espiritualidade, seja por uma série de circunstâncias que determinaram nossa formação, seja por algum tipo de raciocínio (o que pode afetar bastante o resultado, dependendo da capacidade de cada uma para tal atividade).

Não é de bom tom afirmar que há uma verdade. O problema é que isso acaba desembocando no discurso de que existem várias verdades, o que representa uma desvirtuação aberrante do próprio conceito de verdade (e por mais que Bruno Latour e Bárbara Herrnstein Smith façam malabarismos filosóficos para defender uma verdade mais abrangente ou inclusiva, honestamente, não convencem qualquer praticante de um pensamento filosófico minimamente rigoroso). Diante desta máxima do politicamente correto, por mais infundada que seja, estamos nos tornando cada vez mais reféns da opinião.

A opinião é uma das piores coisas que já ocorreu ao gênero humano cultivar, pois tendemos a acreditar que o mero fato de ter uma opinião, quer seja ela formada em cuca própria ou tomada de empréstimo, tendemos a nos apegar a ela como se fosse um filho querido, se bem que na maioria das vezes, filhos um tanto feiosos que as pessoas não costumam gestar por tempo suficiente. Diante disso, uma pessoa média (termo que uso para substituir a machista – e jurídica – expressão bonus pater familias, a fim de não ofender ainda mais a audiência com meu conservadorismo retrógrado...) teria direito a uma opinião a respeito de como conduzir sua espiritualidade de modo a produzir uma noção tão única quanto seu próprio... nariz (teria usado outro termo, mas não ficaria bem para um “born again christian” o emprego de tal calão). Esta singularidade de opinião, embora seja alardeada como uma grande conquista para a independência de pensamento, acaba tendo o efeito contrário, pois acaba levando milhares de pessoas a acreditarem em certas coisas bem parecidas - normalmente crenças dotadas de algum fundo ético socialmente aceitável ou então portadoras de uma estética peculiar nos procedimentos de seus seguidores que suscite algum interesse - afinal o efeito do comportamento de manada é poderoso e quanto mais permissiva, vaga e, sejamos honestos, vulgar (comum) a espiritualidade oferecida, mais popular, acessível e querida ela acaba se tornando (a cientologia é um exemplo perfeito de despropósito pseudo-religioso. E quem também não se lembra dos diversos gurus dos anos setenta?).

Embora grande parte destas opiniões e formas de “espiritualidade” não envolvam Xemu ou a Confederação Galáctica (suponho que tenham visto o link acima), existe sempre uma chance de que coisas deste tipo apareçam. Já o ateísmo ferrenho de muitas pessoas, escondido por trás de uma fachada “liberal”, acaba por servir de canal, inclusive, para um ódio anti-cristão. O cristianismo tem sido bastante combatido, isso não é segredo para ninguém, e é interessante notar que embora exista uma hostilidade natural do cristão com relação ao pecado (o que a maioria das pessoas considera práticas normais de vida como sexo inconseqüente, o uso patológico da mentira, homossexualismo, alcoolismo como requisito para diversão...) ela nem se compara com a fúria que um não cristão emprega ao descobrir que certas práticas tão queridas para ele são tidas como abomináveis por alguém. Ao ser confrontada com a realidade do pecado por meio da pregação do cristão, infelizmente a reação mais comum de uma pessoa média é dizer que não acha que seja o que faz é ruim porque ele acredita “que não tem nada de mais, que existe uma energia assim... uma força maior e coisa e tal, e que o cristianismo é limitado demais...” ou então que “não existe essa coisa de Deus e de Bíblia, e isso é coisa de pastor para explorar o povo” (veja como a revelação milenar inscrita na bíblia sucumbe diante da opinião mal cozida na cabeça do sujeito) E diante da eventual insistência do cristão em defender aquilo no que crê, o interpelado logo torce para que voltem o Colosseum e seus leões.

Voltando ao problema pessoal que me pôs a escrever: por que me chamar de dogmático? Bem, na verdade creio que é porque eu sou, de certo modo, dogmático. Meu amigo me conhece bem e estava certíssimo. Mas sustento que tenho toda razão para ser dogmático, afinal, enquanto todos ao meu redor tem por uso começar as fases com “Eu acho...”, eu prefiro começar com “A Bíblia diz que...”. Essa diferença é essencial, pois é o que distingue o cristão e é o que empresta uma autoridade tremenda à sua opinião, desde que devidamente fundada na Bíblia bem interpretada. A livre consulta à Escritura é o que me ajuda a não ser, a rigor, dogmático; porém, hoje, o simples fato de seguir a Bíblia faz de mim um dogmático aos olhos do mundo. O fato de sustentar a verdade do evangelho, e sustentar – implicitamente – que existe tal coisa como a verdade causa todo o tipo de arrepios porque faço referência a um padrão fixo de valores e tenho uma visão de mundo determinada por uma verdade eterna.

O cristianismo possui implicações éticas, mas também epistemológicas, científicas e psicológicas que são absolutamente chocantes para o mundo hoje tanto quanto o foram para aqueles que discutiram religião com os primeiros cristãos. É importante procurar entender que espiritualidade é coisa séria, não é algo que você pode adequar às circunstâncias ou trocar como quem muda uma peça de roupa íntima. É um compromisso que, levado a todas as suas conseqüências, muda a própria maneira como o mundo nos afeta – as relações, os fatos, as notícias – e somos de fato transformados. Não sou grande fã do perspectivismo, mas nesse caso a idéia se aplica bem, é como se já não víssemos o mesmo filme que as outras pessoas. Somos radicalmente alienados do nosso meio, transitamos por ele como estranhos, e sofremos com um certo estranhamento do mundo também. Este aspecto experiencial decorre dos pressupostos que descrevi acima.

Minha palavra para quem passa pelo que eu passo é que fique tranqüilo e aproveite. Se estão estranhando praticamente tudo que tem saído da sua boca ultimamente e suas participações em debates “espirituais” começam com citações bíblicas, esse radicalismo é o ponto ótimo de sua existência cristã. Aqueles que estranham o que digo deverão saber que o único meio de participar da compreensão da realidade do Espírito (de Deus) é assumir essa perspectiva nova e abandonar para sempre seu velho modo de pensar, seja ele qual for, por algo mais perfeito. Se soei um pouco dogmático (ou até pior), consegui o efeito desejado.

terça-feira, janeiro 16, 2007

O Amor em Vista

Faz muito tempo que não me deixava encantar por poesia dessa maneira, de modo que faço questão de publicar esta aqui. É importante dividir estas coisas, que mais é multiplicá-las do que dividí-las, afinal idéias não se gastam assim tão fácil só porque as pensamos. O autor eu não conhecia, cheguei a ela por acaso, mas vejam se não é uma beleza...



(fonte: http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v282.txt)



O AMOR EM VISITA



Herberto Helder



Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.

Seus ombros beijarei, a pedra pequena

do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade

de dois seios, com o peso lúbrico e triste

da boca. Seus ombros beijarei.



Cantar? Longamente cantar,

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave

o atravessar trespassada por um grito marítimo

e o pão for invadido pelas ondas,

seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes

ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento

de alegria e de impudor.



Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água.

Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;

e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,

os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.

- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,

mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria.



Dai-me uma mulher tão nova como a resina

e o cheiro da terra.

Com uma flecha em meu flanco, cantarei.



E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,

cantarei seu sorriso ardendo,

suas mamas de pura substância,

a curva quente dos cabelos.

Beberei sua boca, para depois cantar a morte

e a alegria da morte.



Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro

pescoço de planta,

onde uma chama comece a florir o espírito.

À tona da sua face se moverão as águas,

dentro da sua face estará a pedra da noite.

- Então cantarei a exaltante alegria da morte.



Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela

despenhada de sua órbita viva.



- Porém, tu sempre me incendeias.

Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite

imagem pungente

com seu deus esmagado e ascendido.

- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.



Entontece meu hálito com a sombra,

tua boca penetra a minha voz como a espada

se perde no arco.

E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua

estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo

se desfibra - invento para ti a música, a loucura

e o mar.



Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,

a inspiração.

E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.

Vou para ti com a beleza oculta,

o corpo iluminado pelas luzes longas.

Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos

transfiguram-se, tuas mãos descobrem

a sombra da minha face. Agarro tua cabeça

áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou

aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -

eu sou a beleza.

Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem

teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.



Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti

que me vem o fogo.

Não há gesto ou verdade onde não dormissem

tua noite e loucura,

não há vindima ou água

em que não estivesses pousando o silêncio criador.

Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos

originais.

Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra

a carne transcendente. E em ti

principiam o mar e o mundo.



Minha memória perde em sua espuma

o sinal e a vinha.

Plantas, bichos, águas cresceram como religião

sobre a vida - e eu nisso demorei

meu frágil instante. Porém

teu silêncio de fogo e leite repõe

a força maternal, e tudo circula entre teu sopro

e teu amor. As coisas nascem de ti

como as luas nascem dos campos fecundos,

os instantes começam da tua oferenda

como as guitarras tiram seu início da música nocturna.



Mais inocente que as árvores, mais vasta

que a pedra e a morte,

a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,

tinge a aurora pobre,

insiste de violência a imobilidade aquática.

E os astros quebram-se em luz sobre

as casas, a cidade arrebata-se,

os bichos erguem seus olhos dementes,

arde a madeira - para que tudo cante

pelo teu poder fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,

eu sei quanto és o íntimo pudor

e a água inicial de outros sentidos.



Começa o tempo onde a mulher começa,

é sua carne que do minuto obscuro e morto

se devolve à luz.

Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras

com uma imagem.

Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito

de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade

uma ideia de pedra e de brancura.

És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,

que te alimentas de desejos puros.

E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,

a sombra canta baixo.



Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,

onde a beleza que transportas como um peso árduo

se quebra em glória junto ao meu flanco

martirizado e vivo.

- Para consagração da noite erguerei um violino,

beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada

darei minha voz confundida com a tua.



Oh teoria de instintos, dom de inocência,

taça para beber junto à perturbada intimidade

em que me acolhes.



Começa o tempo na insuportável ternura

com que te adivinho, o tempo onde

a vária dor envolve o barro e a estrela, onde

o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida

ingénua e cara, o que pressente o coração

engasta seu contorno de lume ao longe.

Bom será o tempo, bom será o espírito,

boa será nossa carne presa e morosa.

- Começa o tempo onde se une a vida

à nossa vida breve.



Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna

salina, imagem fechada em sua força e pungência.

E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado

em torno das violas, a morte que não beijo,

a erva incendiada que se derrama na íntima noite

- o que se perde de ti, minha voz o renova

num estilo de prata viva.



Quando o fruto empolga um instante a eternidade

inteira, eu estou no fruto como sol

e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada

matriz de sumo e vivo gosto.

- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices

das nuvens florescem, a resina tinge

a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.

E estás em mim como a flor na ideia

e o livro no espaço triste.



Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento

na cevada pura, de ti viriam cheias

minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses

em minha espuma,

que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?

- No entanto és tu que te moverás na matéria

da minha boca, e serás uma árvore

dormindo e acordando onde existe o meu sangue.



Beijar teus olhos será morrer pela esperança.

Ver no aro de fogo de uma entrega

tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus

será criar-te para luz dos meus pulsos e instante

do meu perpétuo instante.

- Eu devo rasgar minha face para que a tua face

se encha de um minuto sobrenatural,

devo murmurar cada coisa do mundo

até que sejas o incêndio da minha voz.



As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso

jovem da carne aspiram longamente

a nossa vida. As sombras que rodeiam

o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto

seu bárbaro fulgor, o rosto divino

impresso no lodo, a casa morta, a montanha

inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo

- aspiram longamente a nossa vida.



Por isso é que estamos morrendo na boca

um do outro. Por isso é que

nos desfazemos no arco do verão, no pensamento

da brisa, no sorriso, no peixe,

no cubo, no linho, no mosto aberto

- no amor mais terrível do que a vida.



Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz

o perfume da tua noite.

Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua

e branca das mulheres. Correm em mim o lacre

e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca

ao círculo de meu ardente pensamento.

Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam

sobre o teu sorriso imenso.

Em cada espasmo eu morrerei contigo.



E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente

das urzes, um silêncio, uma palavra;

traz da montanha um pássaro de resina, uma lua

vermelha.

Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,

casa de madeira do planalto,

rios imaginados,

espadas, danças, superstições, cânticos, coisas

maravilhosas da noite. Ó meu amor,

em cada espasmo eu morrerei contigo.



De meu recente coração a vida inteira sobe,

o povo renasce,

o tempo ganha a alma. Meu desejo devora

a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma

de crepúsculos e crateras.



Ó pensada corola de linho, mulher que a fome

encanta pela noite equilibrada, imponderável -

em cada espasmo eu morrerei contigo.



E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se

entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro

da tua entrega. Bichos inclinam-se

para dentro do sono, levantam-se rosas respirando

contra o ar. Tua voz canta

o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com

o lento desejo do teu corpo.

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo

eu morrerei contigo.






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