domingo, dezembro 27, 2009

Manhã de Domingo

Faz duas ou três semanas as coisas em casa iam bem. Estávamos de mudança para o apartamento novo, o qual finalmente proveria o espaço do qual precisávamos para viver sem que ficássemos nos acotovelando, estávamos com uma viagem marcada para passar dois dias em Boston e outros dois em New York, as coisas iam bem no trabalho e eu estava folgadamente desfrutando do meu tempo livre para dormir e relaxar da rotina. Tudo isto não durou muito. Três dias no apartamento novo e fui demitido do emprego, acusado de má conduta. De repente precisei avaliar tudo o que estava acontecendo ao meu redor. Minha vida não poderia mais cercar-se do conforto ao qual estava tão gostosamente me acostumando, e senti a mistura um bocado banal e comum (banal e comum até acontecer com a gente) de humilhação e confusão. Por que fui demitido? Por que dessa maneira infamante?

Em meio a essa confusão, corri até o telefone, ligar para casa a fim de conseguir algum apoio moral, apesar da distância, e tentar impor ordem aos pensamentos. Um pouco mais calmo, tendo recebido o carinho da família, comecei a pensar a respeito do acontecido e a me perguntar qual a razão para ter minha segurança tirada de baixo dos meus pés. Ademais, porque Deus me deixou à mercê de gente obviamente maldosa como encontrei no trabalho, onde tanto lutei para manter tudo funcionando ao longo de um ano conturbado que começou com o suicídio do meu chefe e terminou com minha demissão.

Por alguns dias mantive a cabeça clara. Alline me apoiou, acalmou e acompanhou minha saída daquele torpor e do inconformismo que vem diante de um revés tão sério, recomendou que eu visitasse uma igreja - provavelmente achando que era hora de exorcizarmos o que quer que nos estivesse perturbando. Eventualmente ela também desesperou e eu fui levado a crer que não seria capaz de aguentar o peso da nossa pequena tragédia. Brigamos e eu estava só à noite, finalmente tomando meu segundo copo de uísque, tentando simplesmente não sentir mais nada, quando me dei conta, um tanto bêbado, que a manhã seguinte seria uma manhã de domingo.

Agora convém voltar um pouco atrás no tempo e lembrar da longa e gostosa conversa que tive com o pastor Leandro Peixoto, da nossa querida IBCC. Quando contei que não tinha encontrado uma igreja em Dallas e que, ademais, estava trabalhando aos domingos, de modo que não estava frequentando lugar nenhum, acho que ele deve ter se segurado, ou para não rir, ou para não chorar. Eu mesmo sabia que estes motivos para estar longe da igreja, enfraquecido diante das tentações e desgastado pelos atritos constantes trazidos pelo casamento, eram no mínimo meias verdades. Paciente, o pastor me recomendou certas leituras, me falou de muita gente boa fazendo um trabalho pastoral e teológico interessante, e mencionou que em Dallas havia uma igreja pastoreada por um Matt Chandler, chamava-se The Village Church, e o que ali se pregava estava em linha com o que ele (e eu por influência dele) achávamos ser uma exposição bíblica do evangelho. Fiquei muito entusiasmado com tudo isso, mas fui logo dissuadido da idéia de investigar mais a fundo, especialmente depois de voltar à velha rotina de trabalho e aos velhos vícios - a preguiça, a necessidade de concentrar toda minha atenção à vida doméstica - e o assunto foi jogado para escanteio.

Pois bem, estava eu começando a me sentir um pouco melhor quando tive uma dessas idéias embriagadas de procurar uma igreja e perguntar a Deus o que estava havendo. Consultei o google em busca das igrejas batistas próximas de meu novo domicílio, e qual não foi minha surpresa quando ali estava a Village Church. Desnecessário dizer (porém direi) que fomos até lá no dia seguinte.

Estranhei um pouco o jeitão da igreja. Meio moderna, possui três campus, e o sermão é pregado em um deles e transmitido para os outros por videoconferência. Os pastores se vestem mais ou menos como eu, um moleque de vinte e poucos anos, e o louvor, acima da média, era feito em tom de soft rock contemporâneo. Cheguei ali cansado, humilhado e sem saber o que esperar do futuro próximo. Logo descobri que não era o único com problemas. Fiquei sabendo logo que Matt Chandler está com câncer no cérebro. Ok, eu não conhecia Matt Chandler, era a primeira vez que visitava a igreja, mas é impossível deixar de sentir um desconforto, e de perguntar em seguida: o que foi que ele fez para acabar desse jeito? Não, eu não me sinto melhor observando a desgraça alheia, muito menos em se tratando de um sujeito que, pelo que ouço falar, só fez servir a Deus e ao próximo, como manda o script. Não acho consolo algum na idéia de que muita gente sofre mais do que eu, mesmo porque minha mente queria, em primeiro lugar entender o que estava se passando, e não arranjar desculpas para que eu não me sentisse tão mal assim.

O sermão de Beau Huges, naturalmente versou sobre o dito câncer. Não recordo detalhes da mensagem, foi no dia 13 de dezembro, mas lembro que foi a palavra que precisava ouvir no momento. Basicamente, o pastor explicava que aquela desgraça, bem como outras que acontecem conosco ou ao nosso redor, são resultado do pecado no mundo, do nosso pecado. Depois disso deu uma palavra de consolo para os aflitos, e só me lembro da impressão de estar reafirmado, e de uma vontade de chorar (aqueles interessados podem ouvir a mensagem aqui). Eu estava abatido e fui animado, o bastante para manter a confiança na providência divina, mas estas experiências não duram para sempre, e na correria dos próximos dias, não aproveitei para fazer algo de mais duradouro daquele momento importante e daquela mensagem de ânimo e misericórdia apesar da fúria de Deus contra o pecado.

Passado algum tempo sem voltar à igreja (estivemos viajando, e a viagem será assunto para outro post), já desgastados por uma série de coisas que continuaram dando errado para nós (entre umas tantas que deram certo), nos encontramos rumo à igreja mais uma vez esta manhã. Irritado desde cedo por algumas reclamações de Alline por alguns problemas menores na casa, acabei explodindo e fui berrando de casa até a igreja. Chegando lá, enquanto mexia a boca durante os hinos que não conhecia, fiquei pensando o quão depressa nos esquecemos de Deus. Em duas semanas eu estava na velha rotina, irritado com minha mulher e principalmente assombrado com as mudanças que estes últimos anos trouxeram ao meu temperamento (aqueles que me conhecem normalmente se lembram de um sujeito calmo, meio bobo e normalmente bem humorado). Baixamos a cabeça para orar, e ao final da oração ouvi uma voz familiar que costumava ouvir nas gravações de mensagens e sermões que tanto escuto pela internet. Levantei a cabeça e tive a grata surpresa de ver que o pregador era o John Piper.

Muito amável nesta visita a Dallas (da qual eu não fazia a menor idéia) ele conduziu a igreja por entre uma passagem de Romanos, capítulo 8, mostrando como nosso sofrimento nada mais é do que a maneira de Deus nos fazer ver o quanto o nosso pecado ofende a sua glória. Somente o sofrimento nos faz ver o que nossa rebeldia faz contra Deus. Imediatamente percebi exatamente o que acontecera comigo. E que coisa graciosa ter Deus trazido um de meus pregadores favoritos para dizer o que estava se passando em minha vida em particular, e nas vidas de tantas pessoas em geral, ainda que o assunto do sermão fosse, no fundo, o câncer de Matt Chandler.

Parece, olhando para minha própria experiência, que só paramos de agir com rebeldia diante de Deus quando estamos finalmente cansados demais, abatidos demais para fazer qualquer coisa. Seja cansados, seja rebeldes, Deus encontra meios de nos mostrar o que realmente importa e nos reconduzir quando nos perdemos. O símbolo do bom pastor, longe de ser uma mera analogia, fruto casual do meio em que nasceu o cristianismo (como querem alguns), possui um significado duradouro, pois no fundo, somos como ovelhas, estúpidos e facilmente perdidos, devorados, caso não tenhamos alguém que nos guarde e conduza, e seremos co-herdeiros e irmãos adotivos de Cristo, o cordeiro de Deus. É importante entender que não temos controle sobre nossos destinos, e que devemos nos colocar à mercê da graça divina, pela qual o Senhor nos reconduz a si.

sexta-feira, novembro 20, 2009

Disperso

I


Enquanto não me chega a paciência ou a energia para reler e acabar os posts que queria ter publicado aqui vou escrevendo sobre outras coisas que me ocorrem. O tom de "querido diário" é inevitável, mas já era hora de começar a escrever em maior quantidade, o que é melhor do que não escrever at all. Na era do Twitter (tremo diante da idéia de haver uma "era" do Twitter) em que podemos escrever telegráficos relatos de nossas atividades para todas as pessoas que nos acompanham pela internet, eu, o prolixo bacharel, prefiro utilizar a tecnologia para informar a quem interessar que estou ouvindo Mozart no momento, enquanto me recuperode uma gripe desagradável (putz, e existe outro tipo?) cuja força descomunal me desancou ontem e hoje deixou somente uma má lembrança e muitos lenços de papel.


II


Instalei em meu notebook um programa chamado Digsby, que unifica as mensagens de diversas contas de e-mail, perfis em sites de relacionamento e programas de chat pela internet. Embora esteja gostando da ferramenta, pois me poupa o tempo de ficar ciscando informações e mensagens recebidas de diversas fontes e com diversos graus de interesse.O que me assustou foi constatar, depois de configurar o programa para administrar o MSN, Facebook, Yahoo Mail, Gmail, Hotmail, Google Talk e Twitter (o programa não se conecta ao Orkut nem ao Skype, os quais tenho que ver separadamente) , a quantidade de meios de comunicação dos quais disponho. Achei um exagero, e não fosse pelo Digsby acho que já teria exterminado boa parte deles, pois nunca gostei de estar tão acessível assim. Sinal dos tempos. Moro longe da família e dos amigos mais antigos e seria mais difícil não fossem estas pequenas comodidades, mas para que tantas? Noventa e cinco por cento do que recebo é bobagem. Outro sinal dos tempos. O marketing agressivo é um adversário feroz do nosso controle sobre o próprio tempo (é também, acredito, o túmulo da elegância, da lisura e do respeito) e ficamos constantemente a defender-nos de uma quantidade indescritível de bobagens as quais nos esfregam à cara.


Quantas coisas eu mesmo tive de esquecer ou mutilar para desempenhar meu próprio trabalho... Sempre tive por hábito falar quando solicitado, jamais ser insistente com qualquer pedido, tratar os mais velhos com a devida deferência, e fui sistematicamente solicitado a passar por cima de anos de um trabalho árduo de educação para vender Starbucks e assim "defendê o leite das criança". Situação incômoda, embora eu também não tenha por costume reclamar de barriga cheia. O trabalho é em si fácil. Só não consigo integrá-lo a minha personalidade. Talvez seja isso que me deprime periodicamente. No trabalho também interajo com um número enorme de pessoas por um tempo muito curto. É uma ocupação bastante dispersiva e volto para casa sem um pingo de energia. Ora, "quem comigo não ajunta espalha", e eu estou em cacos, espalhado dessa maneira. Peço a Deus a gentileza de, novamente, juntá-los e ordená-los como só Ele sabe. Não é um problema fundamentalmente diferente destes diversos instrumentos de comunicação que solicitam minha atenção. Doença moderna, criada pelo homem mesmo, com a melhor das intenções.

segunda-feira, novembro 09, 2009

Encontro de Olavo de Carvalho, Alan Keyes e Alejandro Peña Esclusa



Assistam o vídeo, registro de um encontro entre três homens que têm, cada qual em sua área, pensado a política com responsabilidade intelectual e integridade pessoal.

segunda-feira, novembro 02, 2009

Engraçadinha e o Futebol

Curioso como certas coisas voltam à memória com uma força extraordinária, malgrado o decurso dos anos, e nos devolvem um pouco do que somos e já nem sabíamos mais.

O episódio recente, mais ou menos recente, teve a ver com o gosto que minha senhora insiste em manter pela teledramaturgia da Rede Globo. Ora, eu já fui, até pouco tempo atrás, um desses babaquinhas que achavam muito inteligente criticar a emissora. Primeiro criticava por ser direitista demais, depois descbri que não existia direita de verdade no Brasil e passei a criticá-la pelo motivo contrário. Hoje acho muito besta ficar analisando umas tantas puerilidades televisivas e "jornalísticas" do momento e me ocupo de analisar coisas mais interessantes, e vou de quando em quando umas tantas risadas ao lado da patroa assistindo TV em portugûes quando temos a chance, sem culpa nem arrependimento.

But, alas, I digress. O caso é que nessas ocasiões de convívio com minha adorável consorte, calhou de botarmos as mãos naquela curiosa minissérie que foi a Engraçadinha. Vejam bem, quando a série saiu, eu não pude assistir. Mamãe não me deixava por que o negócio era muito maduro para meus verdes olhos (o que não é dizer que meus olhos sejam verdes, como de fato não são), vovó dizia que era imoral, era pecado. Papai bem poderia ter dito que a coisa toda era uma bela putaria (termo dele, não meu) e que eu ganhava mais indo ler um livro.

Bom, pensei, por um lado terei carta branca para ver umas peladas na TV, por outro vou ter que agir muito sério e compenetrado. Não consegui me compenetrar, nem fingir seriedade. O melhor que pude fazer foi passar uns comentários de conteúdo profundamente moralista num tom incofundivelmente histriônico.

No fim das contas eu gostei da série, não pelos motivos óbvios, que já não sou mais moleque, mas porque a linguagem era deliciosa (e vejam que nem li o livro, mas parece se tratar de uma imitação bacana do estilo do autor), e pela trama, que era chocante e fascinante ao mesmo tempo. E ainda tinha o bestiário de imorais que o programa perfilava, me divertiu à beça ver a interação daqueles tipos humanos tão marcados, cada qual vestindo, falando, transpirando, seus pecados particulares.

Ao final da jornada, três pensamentos me assaltaram, mais um pensamento e seria uma quadrilha (ou bando). Aliás, alguém lembra qual foi a última vez em que foi assaltado por um pensamento? Inversamente, não passou por minha cabeça pensamento algum na única vez em que fui assaltado de verdade. Pois então, fui metaforicamente assaltado por três pensamentos, o primeiro foi que eu precisava logo ler mais alguma coisa do Nelson Rodrigues. O segundo foi que se eu tivesse lido Nelson Rodrigues, lá nos tempos de ginásio, teria me poupado a leitura de John Irving, que hoje não acho nem de longe tão interessante quanto o cronista pátrio. O terceiro, logo depois do segundo (naturalmente), foi que eu tinha sim lido Nelson Rodrigues, e tinha gostado.

Se tinha lido e tinha gostado, por que esquecera? O mistério de minha memória roubada (quem sabe por um pensamento assaltante?) me incomodou durante algum tempo. Foi então, algum tempo mais tarde, recém recuperado da bebedeira que seguiu a última vitória da seleção de Dunga sobre a Argentina de ninguém mais ninguém menos que Don Diego Maradona, lembrando de outros assuntos futebolísticos (na distante Dallas em que football é sinonimo de Cowboys, e da vida amorosa de Tony Romo) descobri a razão do esquecimento: Nelson Rodrigues me fez gostar de futebol.

Explico. Meu pai, professor de Educação Física, preparador físico e paisagista nas horas vagas, fez o possível para me interessar pela arte da bola, sem grande sucesso. Por acaso caiu-lhe nas mãos uma edição d'A Sombra das Chuteiras Imortais, a qual tomei emprestada e devorei com alegria. De repente o futebol pareceu interessante, não na tela da TV, ao som dos berros do Galvão Bueno, ou como o exercício suado das aulas ao sol das três da tarde; antes aparecia como o embate luminoso de heróis da bola de outras épocas. Passei a ver o esporte com outros olhos, projetado na tela imaginária que fazia as partidas muito mais reais que aquelas que acompanhava pela televisão.
Quando recordo as discussões sobre quem jogava melhor, os jogadores de antigamente ou os atuais, outra cretinice da qual me curei (menos uma entre muitas), vejo que o buraco é mais em baixo: os escritores daquela época eram melhores, os jogadores assumiam uma estatura e dignidade assustadoras por tabela.
Tudo isso para dizer que estou gostando muito de ler Nelson Rodrigues e como este feliz (re)encontro veio a se passar. E quem quiser que conte outra.

quinta-feira, setembro 03, 2009

A Sagração da Primavera

Faz algum tempo terminei de ler o livro “Rites of Spring” do historiador Modris Eksteins. Nele, autor reflete sobre o mundo moderno e o papel preponderante da Primeira Grande Guerra em sua formação. Nos capítulos finais o autor trata do processo cultural que envolveu a gestação, o nascimento e a explosão do nazismo na Alemanha. Um conceito importantíssimo no raciocínio do autor – o qual não pretendo expor aqui, a fim de não roubar a ninguém o prazer de ler por si o volume – é o de estetização da política.

O processo de estetização da política foi marcante, segundo Eksteins, para a formação do ambiente cultural moderno que culminou na aprovação geral do nazismo pelo povo alemão. A estetização, a vida como arte, a busca da beleza, era o grito de revolta de uma geração que rejeitava a história e o peso das instituições tradicionais de uma sociedade considerada burguesa, antiquada e decadente. A busca do novo, da era que estava nascendo diante de seus olhos, tomou formas de culto, tendo em Hitler seu supremo sacerdote. A figura de Hitler, em si bastante contraditória, era adorada a despeito de não representar nada do que pregava. Ele mantinha a imaginação do povo cativa, completamente alienada da realidade circundante, brandindo diante deles uma imagem de um homem novo, um mundo novo, construções de ficção que pela simples força de sua beleza aparente tornaram sua feiúra real algo solenemente ignorado.

Eric Voegelin encontrou contornos distintos nos mesmos eventos. Ele enxergou na ascensão do nazismo um fenômeno religioso, algo que classificava como uma religião política (tese exposta no livro “The Political Religions” e elaborada em “The New Science of Politics”). Os contornos da religião política podem, segundo Voegelin, ser encontrados em diversas sociedades, desde os antigos coptas até os modernistas do século XX. Em sua perspectiva, Voegelin aponta que o fenômeno de construção de uma nova realidade é ligado à idéia de transformar a Terra em um paraíso, o homem em um ser perfeito, e mostra que tal disposição da alma é bem mais antiga do que a nossa modernidade gostaria de supor.

Fiquei a me perguntar: qual seria a perspectiva mais próxima do fenômeno real? A religião política ou a estetização da vida? A religião política parece carregar o peso da história, ao passo que a vida como arte parece querer jogá-la na lata de lixo, ou talvez recriá-la conforme o desejo da imaginação.

A religião política, ligada ao conceito controvertido de gnosticismo proposto por Voegelin para explicar o caso alemão, possui uma longa história, porém não parece carregar, em uma melhor análise, todo seu peso. A atitude religiosa gnóstica – ou revolucionária, como se queira – é ela mesma necessariamente cega para sua própria história, e consiste num salto cego para o futuro. Esse salto cego, realizado por todo aquele que dissipa a razão, a história e a família em prol do desconhecido, é realizado justamente por meio da imaginação. É a imaginação que pinta um quadro atraente do futuro a ser buscado pelo seguidor da religião política. A força das imagens se impõe e, nas mãos de um artista talentoso como Hitler, arrasta a o público para dentro de sua fantasia até a morte.

Gostaria, inclusive, de entender melhor por que razão a morte possuía tamanha atração para os seguidores da suástica. A intensidade da vida potencializada até seu limite dando lugar à morte era uma constante na psique perturbada pelo radical deslocamento da realidade sofrido por aquelas pessoas. A morte, então, possuía uma beleza incomensurável, uma beleza que ainda ecoa na mente de alguns artistas, creio eu.

Além desta incursão por um possível motivo que explique a complementaridade das visões sobre a Segunda Grande Guerra e os momentos que a precederam, fica uma dúvida: até que ponto a complementaridade não seria conseqüência de uma semelhança profunda entre a experiência religiosa e a experiência estética? Seria então a revolta artística um espelho da revolta contra a religião cristã no ocidente, empreendida pela teologia liberal e pela filosofia secular do século XIX? Foi a rejeição de Deus, e a subseqüente perda de sentido por parte de tanta gente nas sociedades ocidentais, que lançou toda uma geração a precisar fazer a escolha vil entre Eros e Tanathos?

Roger Scruton, no volume Modern Philosophy, faz um interessante paralelo entre a religião e a arte, apontando ambas como instâncias em que experiência e sentido estão unidos intimamente. A perda de sentido, portanto, seria um fator que afeta igualmente arte e religião, e ambas, ao deixar órfãos os indivíduos, o deixariam indefeso e entregue à adoração estético-religiosa de uma idéia ou de uma figura política. Francis Schaeffer, um dos mais lúcidos observadores dos eventos mundiais no século XX, avisava que caminhamos para um futuro sombrio, justamente quando o progresso humano parecia mais espetacular, e a vida espiritual genuína, bem como a verdadeira educação, ficavam mais e mais distantes das pessoas. A perda da antítese, nos termos de Schaeffer – que podemos entender como noção de verdade, de absolutos, ou seja, de sentido e referência – é um fenômeno semelhante, com conseqüências semelhantes, ao que foi observado por Eksteins. Seria prudente lembrar, então, das lições da história recente.

Isto nos deixa uma pergunta difícil. Em que medida somos herdeiros daquela geração tão peculiar que provocou e assistiu as dores e o parto da modernidade? Quais são as chances de que, dadas circunstâncias semelhantes, venhamos a repetir suas vidas e o caos extraordinário em que se lançaram?

Observação metodológica:

Falar em perda de sentido como um fenômeno histórico não é dizer que a mudança ocorra nas esferas espirituais transcendentes, inacessíveis aos seres humanos normais e que depois se deposite assim acabada nas cabeças das pessoas concretas. Schaeffer foi um excelente exemplo de visionário que, como Taine, não deixou de buscar traçar a história das idéias que combatia a fim de demonstrar suas origens humanas, atribuindo idéias e mudanças aos indivíduos que as trouxeram à luz. Entendo que o método tenha uma vantagem muito maior do que a simples precisão histórica que possibilita ao estudioso. A busca por idéias pessoais ao invés das impessoais é também uma maneira de tirar delas grande parte de seu poder. Se acredito, como Schaeffer, que o próprio Deus é um Deus pessoal que se revela a mim e a quem mais o busque e reivindique responsabilidade por tudo o que faz e cria, não faria sentido imaginar que forças históricas ou idéias políticas perambulam por aí, incriadas e assustadoras, como divindades, lançando os homens uns contra os outros sem qualquer tipo de filiação. Em tempo, este aviso precioso foi dado pelo professor Olavo de Carvalho e convém, também nesse caso, indicar a procedência.


II

Faz algum tempo que escrevi as linhas acima. Desde então comecei a freqüentar (o termo é inexato, porém servirá para o momento) o Curso Online de Filosofia, aprendi o papel imprescindível da imaginação para nos instalar na realidade. Relendo o que escrevi à luz deste novo aprendizado me apareceu o seguinte problema: como vou entender o apelo à imaginação feito por Hitler ou pelos revolucionários, tão distante da faculdade que nos estabelece na realidade?

Este problema me faz pensar de novo em Schaeffer. O teólogo fala, no começo de sua “Trilogia”, da ruptura da unidade do conhecimento, os “dois andares” nos quais a mente humana se dividiu, incomunicáveis e antagônicos. O primeiro é o da razão pura aplicada aos dados sensíveis (ou a ciência, da maneira como é popularmente entendida). O segundo é o da fé e do conhecimento espiritual que dá sentido e orientação à vida do homem (o elemento espiritual). Ora, quando a imagem completa da realidade é inacessível ao homem, uma vez que este não consegue realizar por si a ponte entre os andares isolados do conhecimento, a imaginação não pode instalar ninguém na realidade de forma integral. A faculdade imaginativa será sempre aplicada a um ou outro domínio sem que o sujeito se dê conta do quadro completo que se desenrola diante dele.

O que teria acontecido então? A primeira idéia que me ocorre (e pode nem ser a mais correta) é que o uso feito da imaginação no caso aqui examinado é feita de forma diversa daquela que nos seria salutar. Diante da incomunicabilidade entre os dois andares em que a mente humana se dividiu (evidente que alguns seres humanos individuais escolhem o primeiro andar e outros seres humanos escolhem o segundo) o homem desesperado por alguma forma de sentido e orientação na vida, deferente do racionalismo difuso e pseudo científico, sente de forma pungente a atração do salto cego de fé rumo a alguma forma de sentido existencial e espiritual. O caso é que essa situação foi explorada com maestria pelo Fürher, que apelou para uma imaginação sem acesso à realidade como um todo a fim de fazer dela um instrumento de expressão do impulso de dominação de destruição, projeto no qual foi seguido por milhares de milhares.

De fato, a grande obra do diabo é fazer caricaturas monstruosas das criações de Deus. Tudo indica que esse caso não foi diferente, a imaginação que deveria estabelecer o homem no real acabou virando meio de afastá-lo do real e lançá-lo num impulso de destruição devastador.

quarta-feira, junho 17, 2009

Em férias

Das férias não há muito a dizer. Abracei meus pais, visitei parentes, encontrei amigos, fiz compras, às vezes com gosto, outras à contra gosto. Depois de dois anos reclamando a falta de tempo para estudar o que gosto, minha atenção se dispersa entre visitações, restaurantes, bebedeiras ocasionais que só fazem cócegas à minha consciência e me aborrecem o estômago.

Tudo parece um regresso à adolescência tardia que vivi antes de casar. O que me surpreende é o fato de que estive tão afeito a essa vida que hoje já não reconheço. Não me vejo mais como o moleque folgado que passava os dias entre a TV e a internet, roubando algum tempo para os livros quando convinha. Hoje, por simplória que seja minha ocupação, tenho lá minhas responsabilidades, que pesam e ao mesmo tempo dão ao peito certa gravidade e aos pés um alicerce mais firme no real. Diante de tudo isso, a preguiçosa passagem dos dias de férias incomoda bastante.

Quando observo os homens de gênio, o quanto fazem e em quão pouco tempo, fico abismado ao ver quão pouco tenho eu para mostrar na hora de prestar conta dos meus dias. Pensar nisso me incomoda um bocado, ainda que tenha certeza de que minha atenção vagante tratará de esquecer o negócio todo diante da primeira oportunidade de fazer algo menos deprimente.

Tentação diabólica pensar bobagens ao invés de concentrar a mente e o espírito em algo que preste. Nas poucas vezes em que fiz o esforço a recompensa foi grande. Agora que patino nestas reclamações medíocres, nem o pior, nem o melhor entre meus pares, simplesmente perdido em meio à vastidão do mundo assim aberto diante dos olhos, tremo diante da responsabilidade que tanta gente assume sem mais delongas: ser homem.

É certo que minha covardia recede diante da necessidade e do dever, espremido, então, entre a inércia e o impulso que de fora me leva a agir em favor de algum avanço, algo melhor na vida, fica espremido o melhor em mim, a parte que, não fosse minha pequenez, teria achado energia e tempo para fazer algo da vida que ao menos tivesse um sentido identificável. Tenho medo de me tornar mais um caso, nas palavras do filósofo, de vida que poderia ter sido e não foi.

Outras dúvidas ocorrem na cabeça desocupada: será que minha propensão intelectual é vocação ou teimosia? Comecei a coisa toda por não saber mais o que fazer. Só sabia ler o que quer que fosse e, confundindo inteligência com leitura, tentei me aprofundar no desenvolvimento do intelecto, tudo para descobrir que na verdade faltava ainda fazer brilhar o espírito, e que a verdadeira vida intelectual se passava fora dos textos dos livros - meros registros, sombras amarelecidas da verdadeira inteligência. Dos livros acabei chagando a algo mais profundo e, embora fascinado, ao ver que o buraco era mais embaixo, me encontrei novamente perdido, para meu desconsolo. No mais, que fim se haverá de dar a tanta inteligência? Bastará que ela exista e ficaremos todos satisfeitos?

Levei três semanas para sair do zum zum zum patético das férias tão aguardadas e articular estas lamentações. Quanto mais tempo não levarei para fazer algo a respeito... Esta aflição é paralisante. Se não passar sozinha, não sei que fim terei. Só sei que não será bonito.

terça-feira, abril 28, 2009

Permissão para Matar

Estava assistindo Sleepless in Seattle com minha mulher ontem à noite - um dos meus filmes favoritos, que ela não tinha assistido ainda - fiquei bastante nostálgico da minha adolescência, um evento que não acontece com muita freqüência. Além do próprio Sleepless in Seattle, que é um dos filmes mais enternecedores que já vi, lembrei de um filme fantástico da série 007 chamado License to Kill. A razão é que Carey Lowell, a falecida esposa de Sam que ele vê em sonhos em Sleepless, é a bondgirl Pam Bouvier em License to Kill (hoje ela é mais conhecida como Mrs. Richard Gere).

Lowell é uma bondgirl incomum, capaz de fazer bonito frente ao agente 007 em qualquer luta, independente e desafiadora. É interessante ver uma bondgirl que não derrete na tela diante da mera presença de James Bond. A química entre ela e Timothy Dalton é perfeita, uma dessas coisas que leva a gente ao cinema para ver. Em poucas ocasiões me vi torcendo por uma dupla de heróis como foi o caso com os dois.

Fiquei impressionado na época ao descobrir que License to Kill fez muito pouco sucesso com o público americano. Grande parte dos críticos concordam que License foi um dos melhores filmes do agente 007, e muita gente concorda em dizer que Timothy Dalton foi o Bond mais fiel aos livros de Ian Flemming. É engraçado, eu sou da geração que viu Pierce Brosnam interpretando o agente nos cinemas e, apesar do charme inegável ator, achei que ele fez algumas das piores interpretações de Bond no cinema; depos de estar acostumado com um bond desses, assistir ao 007 de Timothy Dalton foi uma surpresa muito grata. Ele conseguiu antever a direção que a série teria de tomar (especialmente depois de Die Another Day, possívelmente o pior filme da série) para cativar a audiência e principalmente respeitá-la. O mais interessante é que ele o fez faz uns bons vinte anos.

Os fãs da série, em especial aqueles que tiveram uma boa impressão do Bond atual, fariam bem em assistir License to Kill. É inevitável a comparação com Quantum of Solace, uma vez que em ambos vemos um Bond que renega o MI6 para buscar vingança por motivos pessoais.O Bond de Daniel Craig é, para mim, um remake do de Dalton, sério, determinado, implacável, nada propenso a fazer piadinhas imbecis.

License to Kill fime tem grandes cenas de ação, capangas memoráveis (como o ator/revolucionário bolivariano Benício del Toro), uma ponta com o Wayne Newton, locações impressionantes, que fazem justiça à tradição dos filmes de 007 de serem úteis guias turísticos e de quebra um grande sucesso nas paradas americanas foi a música dos créditos finais do filme, If You Asked me To, composta por Diane Warren e interpretada por Patti LaBelle. Cada vez mais pessoas, ao que me parece, estão reconhecendo suas qualidades, e gostei de ver que eu não era o único a apreciar este subestimado capítulo da saga de James Bond. Espero ter contribuído para fazer justiça ao filme.

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Roger Scruton Fala sobre Música

Roger Scruton é um dos mais interessantes filósofos da atualidade. Ele publicou sobre uma variedade enorme de temas: política, conservadorismo, arquitetura, estética musical, e por aí vai; também é autor de uma das introduções à filosofia mais bacanas que já tive a oportunidade de ler, o livro Modern Philosophy, que embora trate de filosofia moderna acaba introduzindo a maioria dos problemas filosóficos melhor que muito livreco que aparece por aí.

O artigo que quero apresentar aqui não tem nada a ver com filosofia moderna. Tem a ver com música mesmo. Scruton - que por sinal chegou inclusive a compor uma ópera, embora isso seja outra história - escreveu um artigo bacana no Sunday Times a respeito do aparente sumiço da música na vida diária. Ele toca de leve, como seria de se esperar em um artigo de jornal, no problema estético que representa o consumo de música sem uma boa melodia.

Isso sempre me incomodou, mas me sentia um idiota quando falava minha opinião sobre boa parte da música popular ou pop para alguém. Agora estou vingado. É sempre gostoso ver uma pessoa bem mais inteligente que você confirmando uma opinião enterrada por timidez e pressão social. Mesmo em casa sou desencorajado pela esposa e nossa gata, ambas detestam o canto e o assovio, também mencionado por Scruton, e ambas começam a miar e me arranhar se estou cantando. Uma lástima. Mas chega de digressões. O link para o artigo está aqui:

http://entertainment.timesonline.co.uk/tol/arts_and_entertainment/music/article5467286.ece

Sem mais para o momento, despeço-me. Bateu uma vontade louca de atazanar a mulher e a gata agorinha mesmo.