sexta-feira, julho 28, 2006

A Excomunhão de Espinosa

Recebi um gentil e-mail de Brunilda, a qual me conclamava a continuar a postar alguns escritos neste espaço. Passada a natural lisonja que sente um escrevinhador amador nesses momentos, pus-me a escrever. Embora tenha composto o texto no dia em que recebi o e-mail, acabei achando-o incompleto e deixei o pobre engavetado. Muitos afazeres acadêmicaos acabaram por me desviar a atenção, não só do blog como de minha vida social, durante mais ou menos um mês, de sorte que só agora acheio ocasião para trazer à luz o bebê que jazia em minha pasta de originais. Meu agradecimentos a Brunilda e meu pedido de desculpas pela indelicadeza de escrever e não publicar. Dado que não respondi seu e-mail espero ompensar fazendo público o meu obrigado.

A excomunhão de Espinosa e a liberdade fundamental.

Pareceu-me estranho, ao ler Francis Schaeffer, que o grande teólogo fizesse certas críticas à modernidade, em especial no campo da filosofia, enquanto elogiava o pensamento da reforma em muitas frentes e deixasse de lado a doutrina de Baruch de Espinosa. O judeu apóstata que transitava em meio a protestantes calvinistas e judeus refugiados na Holanda lançou as bases do pensamento “do desespero”, para usar a terminologia de Schaeffer, muito antes de Hegel e Kierkgaard. Se não influenciou diretamente o pensamento moderno (falo em modernidade no sentido dado por Schaeffer), certamente foi lido por filósofos de grande renome, os quais levaram a termo pensamentos semelhantes sobre Deus e sobre o homem, com as piores conclusões.

Por que o trabalho de Espinosa foi proibido na Holanda? O que explica o fato de os reformadores holandeses tão afeitos à liberdade e contrários à repressão demonstrarem tamanho horror ao pensamento do filósofo? Espinosa foi, também, excomungado pelos judeus de sua comunidade e é preciso entender a razão disso a fim de não cair no velho truque de apelar para a intolerância religiosa como explicação geral para os males do mundo (e não falta nunca quem esteja disposto a fazê-lo).

Em primeiro lugar, a fim de preparar o que segue, devo dizer que admiro bastante a filosofia de Espinosa. Muito embora discorde plenamente de suas teses centrais, como discordo das de Schopenhauer – o qual, aliás, foi seu leitor – por razões semelhantes, ele foi incrivelmente perspicaz em relação aos homens. Sua cosmovisão, incapaz de prover uma base suficiente para explicar o mundo apropriadamente, é amplamente superada pelo olhar do filósofo em relação ao homem, na medida em que consegue perceber a natureza humana e dar conta de grande parte dela de maneira sistemática e detalhista no terceiro livro da Ética e em outros lugares na sua obra. Apesar de perceber as profundas vicissitudes do homem, Espinosa não se inclui entre os filósofos do desespero diretamente porque nunca deixou de ser movido por um otimismo humanista na “evolução” do homem (o termo é anacrônico, mas ajuda) através do conhecimento da natureza.

O primeiro livro da Ética fala de Deus. Deus é a causa de si mesmo, desdobrando-se articuladamente em modos e atributos que são compõe o mundo em suas subseqüentes especificações. É o que se costuma chamar Deus sive natura. Este é o primeiro problema do pensamento de Espinosa, e vai viciar os seus posteriores desenvolvimentos em grande medida. Se Deus é idêntico ao mundo, se somos modos da substância infinita, um problema lógico se apresenta: dizer que tudo é Deus é o mesmo que dizer que nada é Deus.

O Tratado Teológico Político analisa a Escritura Sagrada conforme esta premissa de que Deus e a natureza ou o mundo são a mesma coisa. Desse modo, a Bíblia é interpretada conforme os padrões da filosofia natural. Tudo o que, no texto, contradiz as leis científicas é tido como metáfora, e a profecia é interpretada como resultado da imaginação dos profetas. Esse pensamento é exatamente o mesmo do liberalismo teológico de nossos tempos e da busca pelo Jesus histórico. Como dizia Schaeffer, é impossível separar o aspecto sobrenatural da narrativa bíblica sob pena de perder de vista o objeto de estudo. A história bíblica e o sobrenatural são indissociáveis.

O humanismo de Espinosa é resultado do esvaziamento de Deus. A identificação do criador com a criatura pode ser realizada no intuito de elevar a criatura, mas como resultado depara-se com o rebaixamento do criador e com a subseqüente perda de valor da criatura. Quando Marx, por exemplo, fala da reificação do homem, faz uma análise profundamente cristã do problema, rejeitando, no entanto a solução lógica que seria reestabelecer o criador que dá valor ao ser humano. Essa análise do problema do valor do ser humano sem a resposta adequada desemboca no totalitarismo socialista, a mera substituição do tirano.

A Bíblia revela um Deus todo-poderoso com uma ressalva: Ele é fiel a si mesmo. Se fiel a si mesmo, podemos confiar (e Deus se mostra ao homem, dando prova disso) na sua palavra. A palavra de Deus, a promessa de Deus, é nosso escudo contra a arbitrariedade do poder infinito Dele, bem como do arbítrio (muito pior) do homem, seja o tirano, o aristocrata ou o povo reunido em assembléia. Nossa razão, dada por Deus, bem como a Bíblia, apontam para um princípio de não contradição d’Ele; esse princípio significa que Deus não agirá contra sua própria vontade conforme revelada na sua palavra.

Ora, a experiência mostra que o homem tem para o próprio homem o valor de coisa. A crítica marxista da reificação do homem é mais velha do que si própria e é uma percepção da natureza maligna do ser humano. Espinosa já mostra que amamos ou odiamos os outros conforme sua capacidade de nos causar alegria ou tristeza. Esse homem inconstante não pode ser a medida, o padrão, que confere valor ao próprio homem. A ética que tem o homem como valor absoluto não serve de nada. O próprio Espinosa não consegue escapar dessa premissa e começa seu livro falando de Deus em primeiro lugar, apesar de defender uma idéia de Deus absolutamente vazia, e por isso mesmo herética.

A questão da liberdade, que é uma tônica na Ética de Espinosa (parte V), esbarra em uma questão fundamental: a liberdade sem um sentido é absolutamente nula. A liberdade serve para que possamos perseguir um fim sem sermos impedidos. Se não há o que buscar a liberdade só serve para o exercício ou a expressão de nossa natureza má. O caos é a liberdade sem sentido, a ordem é a liberdade orientada para um fim bom. Liberdade como valor isolado não serve para nada. A falta de Deus ou sua substituição por motivos, símbolos ou causas meramente humanas tornam a liberdade o princípio da tirania.


A fé na evolução humana por meio da difusão do conhecimento adequado da natureza e da alegria é ingênua se confrontada pela experiência e pela Escritura; ambas retratam um homem caído, separado de Deus, mau. A Bíblia revela não só a queda do homem como também a sua meta: a religação (religião) com Deus. O verdadeiro sentido da vida humana aponta para o Deus transcendente da Bíblia, não para a natureza (podemos igualmente lembrar do bom selvagem de Rousseau, a noção de homem “naturalmente” bom e que viverá bem se voltar à vida antes da cultura, mas este é outro autor que merece a atenção que o tempo não permite dar).

A excomunhão de Espinosa nos ensina em primeiro lugar que não se excomunga ninguém por motivos políticos e sim teológicos. Espinosa não foi excomungado por defender a liberdade humana, o que fez defendendo um individualismo radical mesmo para os dias de hoje, mas por defender uma idéia imanentista e vazia de Deus, contrária à experiência religiosa verdadeira. A segunda observação é que devemos entender quão grande é a falácia de que o homem se basta, uma vez que a rebelião do homem contra Deus, reeditada pelos liberais iluministas e pelos filósofos de influência scchopenhaueriana (incluindo o próprio) tem resultados práticos desastrosos.