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Juan Donoso Cortés escreveu, em seu “Discurso académico sobre la Bíblia”, um trecho que considero belíssimo. Ele foi muito feliz ao proferir estas palavras e eu certamente fico contente ao repeti-las aqui:
“Hay un libro, tesoro de un pueblo que es hoy fábula y ludibrio de la tierra, y que fue en tiempos pasados estrella del Oriente, adonde han ido a beber su divina inspiración todos los grandes poetas de las regiones occidentales del mundo y en el cual han aprendido el secreto de levantar los corazones y de arrebatar las almas con sobrehumanas y misteriosas armonías. Ese libro es la Biblia, el libro por excelencia.”
O testemunho daqueles que foram inspirados por Deus e legaram ao mundo uma palavra tão excelente e tão proveitosa, cuja mensagem contém o próprio segredo da vida eterna, segredo este que é anunciado, estranha ironia, se nos apresenta de maneira por vezes misteriosa, por outras bem clara. Podemos ler “o livro por excelência” inúmeras vezes, e sempre estaremos diante de algo completamente novo.
Em termos experienciais, creio que foi Eric Voegelin quem teve o insight fundamental a respeito da Bíblia, ao enquadrá-la na categoria de registro, em termos humanos (vale dizer: com símbolos humanos), da experiência da dimensão espiritual da realidade, conferindo ao cristianismo (tradição hebréia aliada à sabedoria grega que permeava a cultura no contexto neotestamentário) a posição de primazia entre todos os credos, por ter alcançado a maior diferenciação dos símbolos que representam a verdade existencial experimentada (Evangelho e Cultura, trad. Mendo Castro Henriques).
A experiência que levou à composição dos livros da Bíblia, embora tenha ocorrido a diversos homens ao longo de muitos anos, a força da revelação e inspiração divinas acabaram por inspirar centenas de gerações ao longo de muitos anos, na política, nas artes, somos constantemente inspirados e lembrados do que é a verdadeira grandeza de Deus, e somos encorajados a imitá-la.
Embora este processo envolva a experiência, e esta tenha um poder muito grande sobre nossa maneira de enxergar a religião, não é, nem de longe, algo suficiente. Voegelin fala em duas etapas, a experiência e a simbolização. As simbolizações acontecem na história, isto é importante, especialmente para Voegelin, de modo que existem entre elas graus variados de diferenciação, como já mencionamos. Conforme uma visão mais adequada da realidade como um todo – ou seja, considerando a dimensão do espírito no todo da realidade. Dentro desta perspectiva, da simbolização e da diferenciação, a filosofia, o uso da razão, não é uma atividade superior à simbolização religiosa, como querem crer muitos filósofos desde o iluminismo até (e principalmente) hoje. A revelação lança bases por demais sólidas para não serem percebidas como essenciais para a vida e para o pensamento humano. A história não pode ser usada para justificar ou tentar compreender o processo pelo qual a Bíblia chegou a produzir tamanhas maravilhas dentro das sociedades e da cultura ocidental, mas é antes uma forma de compreender a ação soberana de Deus, o qual, justamente por meio de sua revelação, nos presenteou com a própria noção de história tal como a temos hoje!
Esta perspectiva constitui um argumento de peso para qualquer projeto de cosmovisão cristã, uma vez que reconhece que, ainda que a revelação e a sabedoria humana não sejam intercambiáveis, esta tem muito a aprender com aquela, especialmente se cremos que a palavra de Deus é, de fato o princípio da sabedoria. Corretamente nota Donoso Cortés no Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo: “La teología, por lo mismo que es la ciencia de Dios, es el océano que contiene y abarca todas las ciencias, así como Dios es el océano que contiene y abarca todas las cosas.” A partir daí, posso ver que de certo modo a pergunta fundamental sobre a relação entre religião (cristã) e filosofia vem sendo feita de forma incorreta. Não deveríamos perguntar se a filosofia pode ajudar a interpretar e entender a Bíblia (embora eu acredite que pode contribuir na interpretação bíblica, jamais como padrão externo, mas como um meio de aprimorar a capacidade de raciocínio do intérprete) mas sim como a Bíblia pode lançar luz sobre o caminho da filosofia, orientando-a pela senda da sabedoria.