quinta-feira, setembro 03, 2009

A Sagração da Primavera

Faz algum tempo terminei de ler o livro “Rites of Spring” do historiador Modris Eksteins. Nele, autor reflete sobre o mundo moderno e o papel preponderante da Primeira Grande Guerra em sua formação. Nos capítulos finais o autor trata do processo cultural que envolveu a gestação, o nascimento e a explosão do nazismo na Alemanha. Um conceito importantíssimo no raciocínio do autor – o qual não pretendo expor aqui, a fim de não roubar a ninguém o prazer de ler por si o volume – é o de estetização da política.

O processo de estetização da política foi marcante, segundo Eksteins, para a formação do ambiente cultural moderno que culminou na aprovação geral do nazismo pelo povo alemão. A estetização, a vida como arte, a busca da beleza, era o grito de revolta de uma geração que rejeitava a história e o peso das instituições tradicionais de uma sociedade considerada burguesa, antiquada e decadente. A busca do novo, da era que estava nascendo diante de seus olhos, tomou formas de culto, tendo em Hitler seu supremo sacerdote. A figura de Hitler, em si bastante contraditória, era adorada a despeito de não representar nada do que pregava. Ele mantinha a imaginação do povo cativa, completamente alienada da realidade circundante, brandindo diante deles uma imagem de um homem novo, um mundo novo, construções de ficção que pela simples força de sua beleza aparente tornaram sua feiúra real algo solenemente ignorado.

Eric Voegelin encontrou contornos distintos nos mesmos eventos. Ele enxergou na ascensão do nazismo um fenômeno religioso, algo que classificava como uma religião política (tese exposta no livro “The Political Religions” e elaborada em “The New Science of Politics”). Os contornos da religião política podem, segundo Voegelin, ser encontrados em diversas sociedades, desde os antigos coptas até os modernistas do século XX. Em sua perspectiva, Voegelin aponta que o fenômeno de construção de uma nova realidade é ligado à idéia de transformar a Terra em um paraíso, o homem em um ser perfeito, e mostra que tal disposição da alma é bem mais antiga do que a nossa modernidade gostaria de supor.

Fiquei a me perguntar: qual seria a perspectiva mais próxima do fenômeno real? A religião política ou a estetização da vida? A religião política parece carregar o peso da história, ao passo que a vida como arte parece querer jogá-la na lata de lixo, ou talvez recriá-la conforme o desejo da imaginação.

A religião política, ligada ao conceito controvertido de gnosticismo proposto por Voegelin para explicar o caso alemão, possui uma longa história, porém não parece carregar, em uma melhor análise, todo seu peso. A atitude religiosa gnóstica – ou revolucionária, como se queira – é ela mesma necessariamente cega para sua própria história, e consiste num salto cego para o futuro. Esse salto cego, realizado por todo aquele que dissipa a razão, a história e a família em prol do desconhecido, é realizado justamente por meio da imaginação. É a imaginação que pinta um quadro atraente do futuro a ser buscado pelo seguidor da religião política. A força das imagens se impõe e, nas mãos de um artista talentoso como Hitler, arrasta a o público para dentro de sua fantasia até a morte.

Gostaria, inclusive, de entender melhor por que razão a morte possuía tamanha atração para os seguidores da suástica. A intensidade da vida potencializada até seu limite dando lugar à morte era uma constante na psique perturbada pelo radical deslocamento da realidade sofrido por aquelas pessoas. A morte, então, possuía uma beleza incomensurável, uma beleza que ainda ecoa na mente de alguns artistas, creio eu.

Além desta incursão por um possível motivo que explique a complementaridade das visões sobre a Segunda Grande Guerra e os momentos que a precederam, fica uma dúvida: até que ponto a complementaridade não seria conseqüência de uma semelhança profunda entre a experiência religiosa e a experiência estética? Seria então a revolta artística um espelho da revolta contra a religião cristã no ocidente, empreendida pela teologia liberal e pela filosofia secular do século XIX? Foi a rejeição de Deus, e a subseqüente perda de sentido por parte de tanta gente nas sociedades ocidentais, que lançou toda uma geração a precisar fazer a escolha vil entre Eros e Tanathos?

Roger Scruton, no volume Modern Philosophy, faz um interessante paralelo entre a religião e a arte, apontando ambas como instâncias em que experiência e sentido estão unidos intimamente. A perda de sentido, portanto, seria um fator que afeta igualmente arte e religião, e ambas, ao deixar órfãos os indivíduos, o deixariam indefeso e entregue à adoração estético-religiosa de uma idéia ou de uma figura política. Francis Schaeffer, um dos mais lúcidos observadores dos eventos mundiais no século XX, avisava que caminhamos para um futuro sombrio, justamente quando o progresso humano parecia mais espetacular, e a vida espiritual genuína, bem como a verdadeira educação, ficavam mais e mais distantes das pessoas. A perda da antítese, nos termos de Schaeffer – que podemos entender como noção de verdade, de absolutos, ou seja, de sentido e referência – é um fenômeno semelhante, com conseqüências semelhantes, ao que foi observado por Eksteins. Seria prudente lembrar, então, das lições da história recente.

Isto nos deixa uma pergunta difícil. Em que medida somos herdeiros daquela geração tão peculiar que provocou e assistiu as dores e o parto da modernidade? Quais são as chances de que, dadas circunstâncias semelhantes, venhamos a repetir suas vidas e o caos extraordinário em que se lançaram?

Observação metodológica:

Falar em perda de sentido como um fenômeno histórico não é dizer que a mudança ocorra nas esferas espirituais transcendentes, inacessíveis aos seres humanos normais e que depois se deposite assim acabada nas cabeças das pessoas concretas. Schaeffer foi um excelente exemplo de visionário que, como Taine, não deixou de buscar traçar a história das idéias que combatia a fim de demonstrar suas origens humanas, atribuindo idéias e mudanças aos indivíduos que as trouxeram à luz. Entendo que o método tenha uma vantagem muito maior do que a simples precisão histórica que possibilita ao estudioso. A busca por idéias pessoais ao invés das impessoais é também uma maneira de tirar delas grande parte de seu poder. Se acredito, como Schaeffer, que o próprio Deus é um Deus pessoal que se revela a mim e a quem mais o busque e reivindique responsabilidade por tudo o que faz e cria, não faria sentido imaginar que forças históricas ou idéias políticas perambulam por aí, incriadas e assustadoras, como divindades, lançando os homens uns contra os outros sem qualquer tipo de filiação. Em tempo, este aviso precioso foi dado pelo professor Olavo de Carvalho e convém, também nesse caso, indicar a procedência.


II

Faz algum tempo que escrevi as linhas acima. Desde então comecei a freqüentar (o termo é inexato, porém servirá para o momento) o Curso Online de Filosofia, aprendi o papel imprescindível da imaginação para nos instalar na realidade. Relendo o que escrevi à luz deste novo aprendizado me apareceu o seguinte problema: como vou entender o apelo à imaginação feito por Hitler ou pelos revolucionários, tão distante da faculdade que nos estabelece na realidade?

Este problema me faz pensar de novo em Schaeffer. O teólogo fala, no começo de sua “Trilogia”, da ruptura da unidade do conhecimento, os “dois andares” nos quais a mente humana se dividiu, incomunicáveis e antagônicos. O primeiro é o da razão pura aplicada aos dados sensíveis (ou a ciência, da maneira como é popularmente entendida). O segundo é o da fé e do conhecimento espiritual que dá sentido e orientação à vida do homem (o elemento espiritual). Ora, quando a imagem completa da realidade é inacessível ao homem, uma vez que este não consegue realizar por si a ponte entre os andares isolados do conhecimento, a imaginação não pode instalar ninguém na realidade de forma integral. A faculdade imaginativa será sempre aplicada a um ou outro domínio sem que o sujeito se dê conta do quadro completo que se desenrola diante dele.

O que teria acontecido então? A primeira idéia que me ocorre (e pode nem ser a mais correta) é que o uso feito da imaginação no caso aqui examinado é feita de forma diversa daquela que nos seria salutar. Diante da incomunicabilidade entre os dois andares em que a mente humana se dividiu (evidente que alguns seres humanos individuais escolhem o primeiro andar e outros seres humanos escolhem o segundo) o homem desesperado por alguma forma de sentido e orientação na vida, deferente do racionalismo difuso e pseudo científico, sente de forma pungente a atração do salto cego de fé rumo a alguma forma de sentido existencial e espiritual. O caso é que essa situação foi explorada com maestria pelo Fürher, que apelou para uma imaginação sem acesso à realidade como um todo a fim de fazer dela um instrumento de expressão do impulso de dominação de destruição, projeto no qual foi seguido por milhares de milhares.

De fato, a grande obra do diabo é fazer caricaturas monstruosas das criações de Deus. Tudo indica que esse caso não foi diferente, a imaginação que deveria estabelecer o homem no real acabou virando meio de afastá-lo do real e lançá-lo num impulso de destruição devastador.

6 comentários:

Rafael Dias disse...

Olá, Tiago.

Não tenho muito o que comentar pois ainda não li nenhum dos livros. No entando, os seus comentários fizeram-me lembrar no mesmo instante deste artigo do Olavo, sobre imaginação e realidade:

http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html

Parece que este conceito de separação é conhecido há mais tempo do que faz pensar o século XX.

Abraços.

Tiago Ramos disse...

Rafael,

Teu comentário foi na mosca. A questão da cisão da realidade no pensamento moderno é um tema comum ao Olavo e ao Francis Schaeffer. Eu estou relendo a Trilogia de Schaeffer agorinha mesmo, e fico iimpressionado ao ver o quanto do trabalho do teólogo americano se assemelha com o pensamento do filósofo brasileiro.

O Scheffer parte de alguns pressupostos comuns aos que parecem orientar o Olavo de
Carvalho. Digo parecem porque seria temerário para mim pretender ter entendido o pensamento do Olavo (e qualquer comentário meu a respeito está mais do que desautorizado). A noção da unidade do real, e portanto do conhecimento, a crítica do pensamento moderno que coincide em vários pontos, o método de confrontar as pessoas com sua estupidez ou maldade de forma incisiva como ato de amor ou caridade. Além disso, muitos dos fenômenos que o Olavo identifica com a mentalidade revolucionária, o Schaeffer lá atrás dava o alarma de que estavam chegando.

O Schaeffer não é um autor que eu subscreveria como filósofo. A análise que ele faz de muitos filósofos parece às vezes meio simplista ou equivocada, mas ele compartilha com o Olavo outra característica muito interessante: a capacidade de olhar primeiro para a realidade. Essa preferência pela abertura para o real é que faz com que Schaeffer tenha sido profético em sua obra, e por isso escolhi me apoiar nele para acabar esse artigo.

Obrigado por ter enviado o link. Vai me dar o que pensar por mais um bom tempo.

Um grande abraço,

Tiago

Anônimo disse...

Tiago,

exceto pelo Schaeffer, tb li os livros que motivaram o seu artigo e tive a mesma impressão que vc, mas não os entendi pelo prima da imaginação. O que apreendi das leituras foi que o modernismo, como fenômeno estético, acabou sendo o motor dos fenômenos genocidas do Sec.XX. Digo isso pois inauguraram uma era de extermínio em massa e engenharias sociais que antes eram impensáveis, não pertenciam ao horizonte imaginativo das pessoas. Sempre houve movimentos messiânicos e gnósticos mas nunca eles haviam chegado ao ponto verificado no Sec. XX, esse "upgrade" foi conseguido pela influência estética do movimento modernista, claro que aliado a um vácuo espiritual, ou como disse o Voegelin, "pneumo-patologia" das sociedades na época.
Quanto ao Schaeffer, interessante que vc tenha visto o paralelismo de seu pensamento com o do Olavo, pois não há nenhuma menção ao autor na página do professor. Quais livros dele que vc se baseou para esse comentário?
Abraço,

Bernardo.

Tiago Ramos disse...

Bernardo,

O Scheffer é um autor muito querido dos evangélicos (tanto americanos quanto brasileiros) que viveu muito tempo na europa tentando entender e ajudar as pessoas que estavam envolvidas com as diversas correntes de pensamento do mundo moderno. Me baseei nas três obras fundamentais de Schaeffer (fáceis de achar no Brasil) The God Who is There, Escape from Reason e He is There and He is no Silent. Também vale a pena procurar uma série de vídeos que ele fez chamada How Should We Then Live?

Ab,

Tiago

Unknown disse...

Olá, Tiago. Tudo certo?

Tenho interesse de comprar esse livro, todavia os sites só anunciam que os exemplares estão esgotados.
Você conhece alguma livraria virtual que permite fazer o pedido?

Tiago Ramos disse...

Caro Cleverton,

O meio mais barato de adquirir este livro, estando no Brasil, é comprar a edição em paperback pelo site Book Depository. Siga este link:
http://www.bookdepository.com/Rites-Spring-Modris-Eksteins/9780395937587
O grande lance é que este site envia para a maior parte do mundo sem cobrar frete.

Boa leitura,

Tiago